Sobre a terra desolada, para qual panorama devemos olhar?

Lilian Maus1

Em nosso mundo pós-pandêmico, nessa terra desolada afetada pelo Covid-19 e adaptada às telinhas de celulares, as plataformas digitais da Internet têm atuado como uma importante vitrine de exposições virtuais e distribuição de textos críticos de arte, onde, frequentemente, a imagem “instagramável” do artista confunde-se com o seu trabalho artístico. Tendo em vista esse contexto, destaco aos leitores a atualidade da obra “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, escritor francês que reforçava o papel alienante da imagem espetacular como modo de dominação capitalista. Hoje praticamente tudo pode ser documentado e rastreado pelos algoritmos na Internet, o que mantém, cada vez mais, o usuário preso na rede de consumo exaustivo digital controlada pelas grandes corporações. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em “Sociedade do cansaço”, fala-nos da exaustão mental provocada pelas mudanças socioculturais e tecnológicas do séc. XXI, tanto alicerçada pela ideia de excelência de desempenho, como pelo excesso de estímulos e de informações. Há muito sentimos que a própria vida desmaterializou-se. As novas gerações já não compreendem a si mesmo fora do âmbito de seus avatares digitais.

No entanto, a desmaterialização do objeto artístico foi um processo longo e historiografado pela norte-americana Lucy Lippard nos anos de 1960/1970.  Em sua crítica, a autora reforçava a ideia de que uma obra de arte não é feita apenas de objetos, mas, também, de mediações discursivas, nas quais o processo de criação vem ganhando, desde então, cada vez mais espaço. Nesse sentido, a sistematização em arquivo dos documentos que circundam e/ou constituem a obra propriamente dita vem sendo há décadas, cada vez mais, importantes para a sua legitimação. Tendo em vista a expansão do potencial arquivístico das plataformas digitais da Internet, empreitadas documentais e editorais vêm ganhando um lugar notório. É nesse contexto que o arquivo da Panorama Crítico acaba de ser resgatado pelos seus editores Alexandre Nicolodi e Denis Nicola.

Segundo Jacques Derrida, em “Mal de arquivo: uma impressão freudiana” o arquivo, em sua etimologia, remonta-nos à palavra grega “arkhé”, que condensaria um duplo significado: o de começo e o de comando. Afinal, ao ampliar a custódia da memória em revistas online de editoras independentes, também poderíamos dizer que no fundo a Panorama Crítico estaria questionando a quem cabe o poder de custódia da memória da dimensão crítica da obra de arte. Todo arquivo histórico passa, como nos bem lembra Walter Benjamin, em “Sobre o conceito de história”, por um processo de barbárie. Decidir o que fica para a história ou mesmo o que é visto aos milhares pelas massas na Internet nunca é uma escolha neutra e objetiva. Os documentos são fruto de interpretação, nunca são material bruto, objetivo e inocente. Cada vez mais os documentos são envoltos por algoritmos relacionados a fins econômicos e políticos. Daí mesmo vem a importância de mantermos as editoras independentes, desatreladas às finalidades imediatas do circuito e do mercado de arte, a fim de criar zonas autônomas para o exercício da crítica.

Lá nos longínquos anos de 2010, em entrevista para Felipe Scovino, no livro Coletivos/Coleção Circuito, quando eu ainda atuava como gestora do Atelier Subterrânea, esse espaço autônomo de arte que agitou o circuito de Porto Alegre entre os anos de 2006 e 2015, eu vinha a citar a Panorama Crítico como uma das iniciativas independentes mais destacadas do Rio Grande do Sul cujo objetivo era expandir o espaço da crítica na época, levando o debate também para a Internet desde 2008. Essa editora e revista online gratuita foi desde sempre um investimento pessoal e uma empreitada independente de Alexandre Nicolodi e Denis Nicola. Por isso mesmo merece ainda mais destaque.

Após 10 anos de deserto, com a paralisação das atividades da editora entre os anos de 2011 e 2021, Denis e Alexandre decidem, corajosamente, voltar a atuar na construção desse panorama, ainda que de uma montanha metafórica cheia de novos obstáculos e desafios. O relançamento da editora é sem dúvida um marco deste ano de 2021, que deve se desdobrar também em novas plataformas digitais. Deixo aqui meus votos de vida longa à revista e à editora pela qual publiquei diversos livros, dentre eles: “Atelier Subterrânea”, “Vetor”, “BR116”, “A palavra está com elas”.


  1. Artista e professora do Instituto de Artes da UFRGS.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, Waltar. Sobre o conceito de história. In. ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993, pp.222-232

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. São Paulo: Editora Vozes, 2010.

LIPPARD, Lucy. Six Years : The Desmaterialization of the Art Object from 1966 to 1972. Berkeley : University od California Press, 2001.

REZENDE, Renato ; SCOVINO, Felipe. Coletivos. Rio de Janeiro: Circuito, Coleção Circuito, 2010.