André D. Pares1
(ou Palhares, como quer a Panorama)
Há momentos que marcam o declínio da humanidade. Quando o atual presidente do Brasil diz, entre salivas, que “ripou” todo mundo do IPHAN, nesse fim do ano pandêmico de 2021, não é só (mais) um uso sem sentido da língua portuguesa. A ignorância orgulhosa propositada marca um ponto profundo de decadência porque procura representar, num ato – aparentemente banal –, toda destruição prévia impetrada por esse governo, não menos cheia de orgulho abjeto.
Essa suposta cereja do bolo – putrefato como a bolsonariedade – quer ter, pois, um componente mórbido a mais. Se o IPHAN é a instituição responsável pelo patrimônio histórico e artístico do país, a sanha assassina da milícia instalada no poder precisa urgente chacinar qualquer sinal de humanidade que o Instituto preserve, como é a função para o qual foi criado há quase 80 anos.
Seria até provável – tal o script tacanho que rege a camarilha – que nem se tivesse achado “azulejo” algum e muito menos numa construção do sr. senil cuja rede de lojas escoltadas por estátuas feiques é devedora de milhões aos cofres públicos. Não fosse a esgarçada garantia de democracia que assegurou a presença do IPHAN no processo, lá em 2019, não se duvidaria de uma cópia da mesma farsa da facada. Ou seja, o surrado artifício, mais torpemente usado quanto mais esse governo afunda, do uso descarado da mentira para dar um recado claro: somos uma milícia (no melhor estilo das ditaduras – ainda que nem isso sejam capazes de fazer direito) nós matamos quem e o que queremos, do jeito que pretendemos, a hora que desejamos; e agora estamos aniquilando uma salvaguarda científica, que é a preservação da história da civilização – essencial para nos resguardar da barbárie – ripando (sic) esse pessoal do IPHAN “com pê agá”.
Humanidade e Memória
A preservação da história da civilização, que é a garantia do trabalho do IPHAN, entre demais importâncias, nos protege da estupidez. Esse fato precisa ser sublinhado especialmente em momentos nefastos da história como o que estamos vivendo. Pois a importância dessa proteção está em podermos seguir com saúde mental para manter a clarividência no prosseguimento do permanente trabalho de pensamento sobre o humano, que ilumina desde a memória até, por isso, o presente e o futuro do que é isso que chamamos de nós (mesmos) – e do que não é (e é maior que o humano e daí que o suporta – literalmente! – e o assegura).
Nesse sentido, a memória, em tal momento da obra do filósofo inglês T. Hobbes, por exemplo, aparece especialmente como uma garantia para sermos quem somos. Sem memória, é praticamente peremptório, conforme Hobbes, que já não possamos ser nós mesmos. O corpo até pode estar ali. Mas não há identidade. Não por acaso, trata-se do mesmo filósofo que imagina o pacto social como ato inaugurante de uma civilidade que deixa o estado de natureza pra trás. Lá, es seres humanes – e isso é uma hipótese especulativa de origem – se matavam por água, comida, abrigo; com o pacto, dão a um soberano (e no texto é masculino mesmo, sem alternativa de declinação de gênero) o poder exclusivo da violência (isto é, de poder matar), e então podem conviver sem medo (e sem necessidade) de matarem-se umes aes outres.
Como se vê, há neste Hobbes (e em muites outres pensadores), a procura atenta e persistente pelas engrenagens que garantem a preservação da humanidade, seja no (auto)conhecimento, através da memória; seja na político-ética, através da forma de organização social. Portanto, todo um elogio e cuidado à natureza humana que, exatamente, arrepia a bolsonariedade – e que, exatamente (e não só!) é uma das atividades que as artes são capazes de fazer.
Identidade, arte; tempo e Natália
Nesse tempo sombrio no qual alguém com algum poder ri grunhindo achando que pode dizimar a civilização com um discurso mal feito, a arte automaticamente se impõe. Fica naturalmente explícito através dela – como se precisasse – que a memória é uma das matérias primas pelas quais o trabalho artístico firma algumas de suas características principais, que é a busca, a descoberta e a construção de identidades. Ao plasmar esse reconhecimento mnemônico tanto coletivo como individual, ela faz o serviço de desvelar e de preservar, ao mesmo tempo, os tempos em que as coisas eram, para em seguida se poder dizer que elas são, e que em seguida já serão de outra forma.
O caso é que não há reconhecimento possível sem a preservação do que foi construído em tempo anterior. O trabalho humane de ser humane é meticuloso. É por isso que se criou a ideia de cultura, é por isso que já não nos matamos (tanto) por tão pouco (embora se tenha voltado, com orgulho, a essa selvageria). É por isso que criamos institutos como o IPHAN. É por isso que uma revista (e editora) como a Panorama Crítico retorna.
Foi com a PC, lá no já longínquo 2009 (nem faz tanto assim, mas ataques profundos à humanidade nos fazem sentir envelhecer mais rápido) que esse reconhecimento de identidade através da arte preservada, num trabalho de arquivo incrível, foi tornado dossiê (na sexta edição da revista). Precisar retomar aquela tarde de muita emoção na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro observando em silêncio e admirado as obras da artista-interna Natália é uma felicidade, não fosse a tristeza de ter que usá-la como imunizante à canalhice assassina que pensa poder fazer desaparecer trabalhos e instituições que revelam, por exemplo, o que segue:
“Natália é a interna doente mental Natália Leite, que no belo trabalho do ex-estagiário Fábio dal Molin (veja o texto no dossiê), tem sua vida explicada-narrada-sentida. Com sua memória de vida e sua obra guardada e exposta, Natália é um pouco mais: parte da identificação da mulher que viveu na segunda metade do século XX no sul do Brasil, e que teve determinados percalços, encaminhamentos e possíveis soluções na sua existência, nesta faixa temporal da existência humana, nesta faixa territorial do planeta.”
(…)
“… ao se dispor a organizar (os trabalhos artísticos des internes), uma das coisas que se pode fazer é se ficar sabendo, por exemplo, que Natália, aos treze anos, fugiu de casa, no interior do estado do Rio Grande do Sul, e, 400 quilômetros depois, veio parar num hospício, na capital, que na época, o ano de 1956, abrigava com sua lotação máxima: cinco mil internes. E saber mais: que depois de tentativas de saídas e voltas necessárias ao hospital como único lugar de abrigo, Natália encontre hoje a serenidade possível numa cor de abóbora, que invariavelmente invade seus bordados e desenhos (detalhe no texto da sexta edição).”
(…)
“Da vontade de se dispor a organizar-arquivar o material produzido por estes louques transformades em artistas, surge a transformação da memória individual em história social.”
Nem percebemos, mas já estamos recolhendo os cacos gerados pela bolsonariedade, limpando o sangue (ainda que muito esteja e ainda vá escorrer), retomando o ar nos pulmões, para que esse ínterim ignominioso da história fique o mais excentricamente exposto possível, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Essa é A ação possível do lugar que estamos, neste lugar, neste momento, para responder ao editorial da PC e agradecer e comemorar sua volta. Pela preservação do Patrimônio Histórico e Artístico da arte que é nos mantermos humanes: salve a crítica, Panorama!
- Prof. de filosofia, jornalista, ms. em comunicação.
Crédito da imagem:
MARS (Museu Antropológico do RS) – http://museuantropologico.blogspot.com/2013/06/tradicao-tupiguarani.html