Um olhar particular sobre a coleção Sartori

Júlio César Herbstrith1

Estudar arte contemporânea é um ato de perpétua desconstrução; ver arte contemporânea, também. Geralmente, quando escrevemos sobre arte contemporânea, partimos de uma ideia ou ideias do que seja o contemporâneo, e sempre (quase que inevitavelmente) nos inserimos em alguma ordem do discurso utilizando ferramentas teóricas que nos permitam construir e defender uma argumentação que justifique a contemporaneidade de determinadas produções. Mas, para que os argumentos não se fragilizem pela distância do objeto estudado, sobretudo, é preciso viver com a arte contemporânea. É na mistura entre, “viver e pensar com”, que gostaria de tecer algumas linhas sobre a exposição – “Coleção Sartori — A arte contemporânea habita Antônio Prado”.

O Museu de Arte do Rio Grande do Sul, situado em Porto Alegre, inaugurou recentemente a exposição da Coleção Sartori. Com foco na arte contemporânea, a coleção possui em torno de quatrocentas obras, sendo que, mais de duzentas e cinquenta delas habitam momentaneamente o Museu. Com curadoria de Paulo Herkenhoff (1949), o recorte está situado no primeiro andar do prédio Histórico, ocupando desde o Hall de entrada, o espaço central deste andar e as suas duas alas (as pinacotecas), a Sala Aldo Locatelli e as Salas Negras.

Logo na entrada, o visitante se depara não apenas com o serviço que informa o conteúdo da Mostra, mas também com os textos de curadoria de Herkenhoff, o texto institucional de Francisco Dalcol, diretor do Museu e o espaço reservado à fala dos colecionadores, Nadia Ravanello Pasa e Paulo Sartori. São textos que apresentam ao público a coleção iniciada em 2013 e que, nas palavras de Herkenhof, “não para de crescer, prioriza arte do Rio Grande do Sul e que, sendo uma boa coleção gaúcha, sempre terá uma relevância no país”.

No texto institucional, Dalcol, além dos habituais agradecimentos, sempre necessários, aponta para a importância de expor coleções e reconhece nelas parte “fundamental” dos sistemas das artes (o plural aqui empregado é por minha conta, já que acredito mais em sistemas do que em sistema). Tal importância se estende desde a rede de constituição dos valores artísticos, nas palavras de Dalcol, até às instâncias de legitimação dos artistas e suas obras, bem como da constituição e preservação da memória. O que mostra que mesmo em curto espaço dedicado a agradecimentos, Dalcol segue sendo pesquisador/diretor – e isso é bom.

Do texto dos colecionadores, apesar de ser curto, gostaria de destacar dois termos que talvez resumam a importância da coleção para eles: “prazer” e “compartilhar”. Duas palavras que aparecem no meio dos dois parágrafos, mas que julgo sintetizar o mesmo sentimento que me leva a escrever estas linhas: o prazer que tive em ver a Mostra e agora poder compartilhar, através de pensamentos formalizados em palavras – que nunca vai dar a dimensão do estar com as obras.

As Obras

Na frente destes textos, já travamos contato com o trabalho de Xadalu (1985), com as imagens dos indígenas em coletes à prova de algo. Invasão Colonial – meu corpo nosso território, de certa forma, marca com precisão uma das partes mais importantes desta exposição organizada por núcleos: a parte que abre espaço na arte para a escuta, a fim de ouvir os povos originários para compreender que estamos em Área Indígena. A montagem da mostra se organiza por núcleos conceituais acompanhados por textos na parede que, segundo Herkenhoff, servem para “… provocar a curiosidade e aprofundar o envolvimento dos visitantes com o conjunto” (HERKENHOFF, ZERO HORA – 29 e 30 de janeiro de 2022).

Quando entrei nas Pinacotecas do primeiro andar do MARGS, onde efetivamente se encontra a maior quantidade de obras, escolhi o caminho da esquerda. Uma pequena pintura de Iberê Camargo (1914-1994) de 1988 estava quase que à frente de “On Ice” de Vera Chaves Barcellos (1938). Pensei nessa conversa estranha e nem sempre amistosa que expõe os tensos nós entre arte moderna e contemporânea no solo gaúcho. Resolvi seguir os caminhos da antiga “gente moça” capitaneada por Barcellos e materializada no Grupo N.O. Neste caminho que busquei à esquerda, encontrei Waltercio Caldas (1946), mais adiante Tunga (1952-2016), José Resende (1945), Patrício Farias (1940), o jovem Túlio Pinto (1974), todos os trabalhos conversando sobre experimentalismo, conceito, forma e espaço, talvez uma pitada de ironia conceitual também. Este núcleo da exposição apresentado em um texto preciso (em dois sentidos, de necessidade e de precisão) que nos chama atenção para a linha que costura o núcleo arte, física e conceito. Sobretudo, quem gosta de História da arte e de arte contemporânea se sente praticando o “Slackline” que marca o início da arte contemporânea no Rio Grande do Sul, afinal que conversa estranha o Iberê estava tendo com a Vera Chaves?

Do experimentalismo conceitual, passando pela ironia, e por um tipo de arte que desafia a fisicalidade corpórea das coisas e suas relações com o espaço que habitam, ainda temos nesse mesmo local do MARGS obras que buscam responder à pergunta de um dos textos precisos – Como vai você na Coleção Sartori, Geração 80? Vai muito bem! Karin Lambrecht (1957), Lia Menna Barreto (1959), Maria Lúcia Cattani (1958-2015), Frantz (1963), Milton Kurtz (1951-1996) e Mário Röhnelt (1950-2018), mais Leda Catunda (1961) entre outros que deixo de fora como convite a ver a exposição, costuram esse tecido contemporâneo marcado pelo conceitualismo dos tempos de AI-5 e por um desejo de gesto e de corpo que sublinhava o fim do regime de ditadura na primeira metade dos anos 1980.

Cabe pontuar que nesse mesmo local da mostra o curador criou outra conversa estranha, mas, essa mais interessante. Dialogam na parede do MARGS “O vendedor de pele” (1903) de Pedro Weingärtner (1853-1929), “Tote Hase Weinen Nicht” (coelho morto não chora, de 1990) de Karin Lambrecht e “Cortado” (1990) de Lia Menna Barreto. Segundo o curador, este conjunto aborda “a relação entre vida e morte, dimensões cruciais da existência humana”. Esse gesto curatorial de criatividade e coragem de criar um diálogo conceitual entre uma obra que antecede mesmo o modernismo no Rio Grande do Sul e duas que fincam a bandeira da arte contemporânea no Estado é digno de um olhar muito atento de quem for visitar a exposição. Não é um truque, não vejo como chiste, mas como um gesto que mostra o quanto o contemporâneo pode estar carregado de “nós temporais” que embaralham a história da arte.

Atenção Área Indígena, na pinacoteca central da mostra revela a potência de uma Coleção que nasce atenta às atuais questões contemporâneas. Um olhar para os processos colonizadores, que expõe as mazelas estruturais e colocam todos os dedos nas feridas sociais abertas neste país. Um recorte que apresenta falas contra hegemônicas, apesar das sistemáticas tentativas de apagamento destas. A instalação de Xadalu – Atenção Área Indígena nos convoca à reflexão sobre o espaço que habitamos, pelo qual nos deslocamos cotidianamente, muitas vezes desviando olhar e o corpo dos corpos e olhares espalhados pelo centro histórico da cidade., Corpos e olhares que nos interpelam com suas crenças registradas em pequenas figuras de madeira e cestarias.

Talvez uma das partes mais atualizadas desta exposição que conseguiu reunir nomes como Rosana Paulino (1967), Nelson Leirner (1932-2020), Adriana Varejão (1964) entre outros, cujos trabalhos mais do que mostrar um multiculturalismo afável e feliz que forma nossa sociedade, apresenta as tensões e tentativas de apagamento das memórias e dos corpos às margens. A exposição ainda se debruça sobre a chamada Pop Arte Gaúcha, ressaltando a relevância de nomes como Glauco Rodrigues (1929-2004) e Carlos Vergara (1941), sobretudo, mostra como a arte produzida no Rio Grande do Sul tem para com a figuração um vasto e fértil campo de produção. Do ponto de vista das linguagens contemporâneas, quase tudo está posto. No entanto, como não tivemos nesta mostra a totalidade da Coleção, não podemos aferir se foi por recorte curatorial, questões de espaço físico do Museu ou os velhos problemas tecnológicos que assombram curadorias que considerem a vertente da arte, tecnologia e ciência, mas o fato é que este braço presente na contemporaneidade não está representado na exposição. Sabemos que arte digital está para além do mero uso das ferramentas digitais de reprodução,  pois, potencializa as relações entre arte e tecnologias de e em rede, como web arte e projetos de caráter mais imersivo, interativo ou que explorem as tensões entre o real e o virtual no contexto de ciberespaços, contudo, propostas com este recorte encontram-se ausentes. Mesmo que seja fruto da escolha curatorial ou de uma coleção jovem em ascensão, é preciso também pensar a partir destas produções que retomam a pauta Arte-Ciência-Tecnologias, as quais, em nosso país foram pensadas a partir de artistas como Waldemar Cordeiro (1925-1973), Diana Domingues (1947) ou Giselle Beiguelman (1962).

Detalhe da exposição Coleção Sartori, MARGS. Marina Camargo, Mapa-mole I – Desenho recortado em látex | 160x140x20cm | 2019. Fotografia de Adreson Vita Sá

A Exposição

Me encaminhado para o final deste breve relato, gostaria de destacar pontos curiosos da mostra. Por falar em curioso, em alguns momentos a montagem da exposição dispõe no mesmo pedaço de parede uma pequena multidão de trabalhos que me lembrou um pouco os antigos gabinetes de curiosidades. Neste sentido, penso que as mais de 250 obras poderiam ter sido racionalizadas de forma diferente, sem que a mostra perdesse a qualidade que tem e que não se pode duvidar; mas o espaço do primeiro andar do Museu certamente ofereceu um grande quebra-cabeças para curadoria e montagem, à qual em alguns pontos me pareceu pecar pela quantidade. A relação de proximidade com os detalhes que poderíamos perceber em determinados trabalhos é sacrificado quando nosso olhar se põe distante e tem que percorrer a altitude do pé direito do espaço expositivo. Sobre os precisos textos, ainda que breves, cumprem muito bem a sua função de instigar e convidar os visitantes a pensar com e a partir da mostra e oferecem uma mediação inteligente, sem ser pedantes.

Detalhe da exposição Coleção Sartori, MARGS – núcleo “Arte, conceito e física”. Fotografia de Adreson Vita Sá

Não comentei as exposições do segundo andar do prédio, mas cabe destacar que elas conversam e muito bem com a Mostra – Coleção Sartori, sendo que o Projeto Acervo em Movimento, onde figuram as mais novas aquisições do Museu, traz nomes importantes no contexto da arte contemporânea como Elaine Tedesco (1963), Élida Tessler (1961) e Carlos Asp (1949), entre outros, mas cito estes por seu diálogo direto com a Coleção Sartori. Ainda no segundo andar do prédio é possível ver a exposição – “Dione Veiga Vieira — TERREAL” que faz circular obras pertencentes aos acervos do MARGS, Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, do MACRS, da Fundação Vera Chaves Barcellos — FVCB, da Pinacoteca Aldo Locatelli da Prefeitura de Porto Alegre além de coleções particulares. Ou seja, após terminarmos 2021 com um bom trabalho de resgate da arte contemporânea gaúcha, iniciamos muito bem o ano falando de arte contemporânea no RS, no que se refere à trazer ao público as produções contemporâneas. Faço menção, sobretudo, à exposição – ARTE CONTEMPORÂNEA RS, que ocorreu na metade do ano passado (2021) e trouxe ao público parte significativa do Acervo do jovem Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, e que culminou em um catálogo digital on line e físico que apresenta, não apenas as obras, mas um importante levantamento dos trabalhos que compõem o Acervo.

Não gostaria de encerrar este espaço de reflexões sem antes mencionar um trabalho cuja atualidade se faz presente desde a fundação de nosso país, Ginástica de Pele (2019) de Berna Reale (1965), vídeo de 4’18’’ que registra a performance de “100 jovens entre 18 e 29 anos (…) que já foram abordados pela polícia”. Segundo a artista, o trabalho critica a violência policial motivada por preconceito racial, de classe e homofobia”. (site oficial – Prêmio PIPA). Este trabalho abre diálogo com a obra de Adriana Varejão Tintas polvo, tubos de tinta para pintura artística que apresentam uma variação cromática que tem como base a autoidentificação do brasileiro com sua “raça” ou “cor” a partir de pesquisa realizada pelo IBGE. O resultado não poderia ser outro, a mistura, a variedade a pluralidade de tons. O mesmo plural cromático que vemos no vídeo de Berna, porém, a potência do trabalho de Reale está na sua infeliz e permanente atualidade. Os jovens performando no vídeo simulam “… o exercício de prender, de abordar, de encarcerar nossa juventude”, como explica Berna (site oficial – Prêmio PIPA). Além da qualidade técnica e estética do vídeo, apresentada através de uma edição que coloca o vídeo em uma situação nômade entre obra e registro de performance, sua potência está na ação, no simulacro de um cotidiano marcado pela desigualdade social, desigualdade de direitos e banalização da injustiça social amarrada ao racismo estrutural em nosso país. Ao ver este trabalho de Berna, sinto que ele marca justamente pela capacidade de amarrar todo o centro da exposição de caráter mais crítico; ele se costura com os noticiários diários e escancara a nossa falta de capacidade de reação em uma pátria cada vez mais armada e que nunca foi de todos.


  1. Júlio César Herbstrith é Doutorando em História, Teoria e Crítica da Arte pelo PPGAV/UFRGS, onde desenvolve pesquisa sobre arte contemporânea no Rio Grande do Sul, atua como docente na Universidade Feevale desde 2013.
    * Fotografias por Adreson Vita Sá

A ação possível é ser humane onde estamos

André D. Pares1
(ou Palhares, como quer a Panorama)

Há momentos que marcam o declínio da humanidade. Quando o atual presidente do Brasil diz, entre salivas, que “ripou” todo mundo do IPHAN, nesse fim do ano pandêmico de 2021, não é só (mais) um uso sem sentido da língua portuguesa. A ignorância orgulhosa propositada marca um ponto profundo de decadência porque procura representar, num ato – aparentemente banal –, toda destruição prévia impetrada por esse governo, não menos cheia de orgulho abjeto.

Essa suposta cereja do bolo – putrefato como a bolsonariedade – quer ter, pois, um componente mórbido a mais. Se o IPHAN é a instituição responsável pelo patrimônio histórico e artístico do país, a sanha assassina da milícia instalada no poder precisa urgente chacinar qualquer sinal de humanidade que o Instituto preserve, como é a função para o qual foi criado há quase 80 anos.

Seria até provável – tal o script tacanho que rege a camarilha – que nem se tivesse achado “azulejo” algum e muito menos numa construção do sr. senil cuja rede de lojas escoltadas por estátuas feiques é devedora de milhões aos cofres públicos. Não fosse a esgarçada garantia de democracia que assegurou a presença do IPHAN no processo, lá em 2019, não se duvidaria de uma cópia da mesma farsa da facada. Ou seja, o surrado artifício, mais torpemente usado quanto mais esse governo afunda, do uso descarado da mentira para dar um recado claro: somos uma milícia (no melhor estilo das ditaduras – ainda que nem isso sejam capazes de fazer direito) nós matamos quem e o que queremos, do jeito que pretendemos, a hora que desejamos; e agora estamos aniquilando uma salvaguarda científica, que é a preservação da história da civilização – essencial para nos resguardar da barbárie – ripando (sic) esse pessoal do IPHAN “com pê agá”.

Humanidade e Memória

A preservação da história da civilização, que é a garantia do trabalho do IPHAN, entre demais importâncias, nos protege da estupidez. Esse fato precisa ser sublinhado especialmente em momentos nefastos da história como o que estamos vivendo. Pois a importância dessa proteção está em podermos seguir com saúde mental para manter a clarividência no prosseguimento do permanente trabalho de pensamento sobre o humano, que ilumina desde a memória até, por isso, o presente e o futuro do que é isso que chamamos de nós (mesmos) – e do que não é (e é maior que o humano e daí que o suporta – literalmente! – e o assegura).

Nesse sentido, a memória, em tal momento da obra do filósofo inglês T. Hobbes, por exemplo, aparece especialmente como uma garantia para sermos quem somos. Sem memória, é praticamente peremptório, conforme Hobbes, que já não possamos ser nós mesmos. O corpo até pode estar ali. Mas não há identidade. Não por acaso, trata-se do mesmo filósofo que imagina o pacto social como ato inaugurante de uma civilidade que deixa o estado de natureza pra trás. Lá, es seres humanes – e isso é uma hipótese especulativa de origem – se matavam por água, comida, abrigo; com o pacto, dão a um soberano (e no texto é masculino mesmo, sem alternativa de declinação de gênero) o poder exclusivo da violência (isto é, de poder matar), e então podem conviver sem medo (e sem necessidade) de matarem-se umes aes outres.

Como se vê, há neste Hobbes (e em muites outres pensadores), a procura atenta e persistente pelas engrenagens que garantem a preservação da humanidade, seja no (auto)conhecimento, através da memória; seja na político-ética, através da forma de organização social. Portanto, todo um elogio e cuidado à natureza humana que, exatamente, arrepia a bolsonariedade – e que, exatamente (e não só!) é uma das atividades que as artes são capazes de fazer.

Identidade, arte; tempo e Natália

Nesse tempo sombrio no qual alguém com algum poder ri grunhindo achando que pode dizimar a civilização com um discurso mal feito, a arte automaticamente se impõe. Fica naturalmente explícito através dela – como se precisasse – que a memória é uma das matérias primas pelas quais o trabalho artístico firma algumas de suas características principais, que é a busca, a descoberta e a construção de identidades. Ao plasmar esse reconhecimento mnemônico tanto coletivo como individual, ela faz o serviço de desvelar e de preservar, ao mesmo tempo, os tempos em que as coisas eram, para em seguida se poder dizer que elas são, e que em seguida já serão de outra forma.

O caso é que não há reconhecimento possível sem a preservação do que foi construído em tempo anterior.  O trabalho humane de ser humane é meticuloso. É por isso que se criou a ideia de cultura, é por isso que já não nos matamos (tanto) por tão pouco (embora se tenha voltado, com orgulho, a essa selvageria). É por isso que criamos institutos como o IPHAN. É por isso que uma revista (e editora) como a Panorama Crítico retorna.

Foi com a PC, lá no já longínquo 2009 (nem faz tanto assim, mas ataques profundos à humanidade nos fazem sentir envelhecer mais rápido) que esse reconhecimento de identidade através da arte preservada, num trabalho de arquivo incrível, foi tornado dossiê (na sexta edição da revista). Precisar retomar aquela tarde de muita emoção na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro observando em silêncio e admirado as obras da artista-interna Natália é uma felicidade, não fosse a tristeza de ter que usá-la como imunizante à canalhice assassina que pensa poder fazer desaparecer trabalhos e instituições que revelam, por exemplo, o que segue:

“Natália é a interna doente mental Natália Leite, que no belo trabalho do ex-estagiário Fábio dal Molin (veja o texto no dossiê), tem sua vida explicada-narrada-sentida. Com sua memória de vida e sua obra guardada e exposta, Natália é um pouco mais: parte da identificação da mulher que viveu na segunda metade do século XX no sul do Brasil, e que teve determinados percalços, encaminhamentos e possíveis soluções na sua existência, nesta faixa temporal da existência humana, nesta faixa territorial do planeta.”

(…)

“… ao se dispor a organizar (os trabalhos artísticos des internes), uma das coisas que se pode fazer é se ficar sabendo, por exemplo, que Natália, aos treze anos, fugiu de casa, no interior do estado do Rio Grande do Sul, e, 400 quilômetros depois, veio parar num hospício, na capital, que na época, o ano de 1956, abrigava com sua lotação máxima: cinco mil internes. E saber mais: que depois de tentativas de saídas e voltas necessárias ao hospital como único lugar de abrigo, Natália encontre hoje a serenidade possível numa cor de abóbora, que invariavelmente invade seus bordados e desenhos (detalhe no texto da sexta edição).”

(…)

“Da vontade de se dispor a organizar-arquivar o material produzido por estes louques transformades em artistas, surge a transformação da memória individual em história social.”

Nem percebemos, mas já estamos recolhendo os cacos gerados pela bolsonariedade, limpando o sangue (ainda que muito esteja e ainda vá escorrer), retomando o ar nos pulmões, para que esse ínterim ignominioso da história fique o mais excentricamente exposto possível, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Essa é A ação possível do lugar que estamos, neste lugar, neste momento, para responder ao editorial da PC e agradecer e comemorar sua volta. Pela preservação do Patrimônio Histórico e Artístico da arte que é nos mantermos humanes: salve a crítica, Panorama!


  1. Prof. de filosofia, jornalista, ms. em comunicação.

Crédito da imagem:
MARS (Museu Antropológico do RS) – http://museuantropologico.blogspot.com/2013/06/tradicao-tupiguarani.html