Talitha Motter1
Resumo:
O presente texto relata como a Panorama Crítico contribuiu para a minha atuação no mundo das artes, traçando reflexões sobre os processos que envolvem a edição de uma revista, bem como os seus momentos de ação, de pausa e de retomada.
Palavras-chave:
Panorama Crítico; Revista de Arte Digital; Formação Profissional; Edição; Relato.
Para a edição de retomada das atividades da Panorama Crítico, escrevo o presente texto como um depoimento de como esta revista contribuiu para o meu processo de formação em artes. Trago aqui, a partir de uma abordagem pessoal, como percebia e percebo os papéis da Panorama Crítico, buscando reforçar a importância de iniciativas como essa para o desenvolvimento de novos pesquisadores, teóricos, críticos e curadores. Acredito que a minha experiência dialoga com a de muitos outros que estudavam no Instituto de Artes da UFRGS entre os anos de 2009 e de 2011, período que abarcou os primeiros números publicados por esse periódico independente.
Em 2008, iniciei meu bacharelado em Artes Visuais. No entanto, logo percebi que não queria atuar como artista. Na época, não havia ainda o curso de História da Arte e não existia mais a possibilidade de realizar a graduação com ênfase nessa área, ainda que fosse possível escolher se o trabalho de conclusão de curso seria em poéticas ou não. Diante disso, fui moldando a minha graduação com as cadeiras disponíveis vinculadas ao âmbito da História, Teoria e Crítica de Arte. No entanto, sentia que, se eu quisesse começar a atuar mais diretamente no mundo da arte, eu não poderia ficar restrita somente à experiência de cursar essas disciplinas.
Não me recordo do momento exato no qual fiquei sabendo da revista digital Panorama Crítico. Porém, era bem claro para mim que, se eu quisesse começar a publicar, eu deveria começar por ela, pois me parecia (e realmente era) um lugar acessível: pouco importava em que etapa de formação você estivesse, todos poderiam fazer parte de suas discussões. Em uma cadeira ministrada pela professora Blanca Brites no segundo semestre de 2009, eu e o meu colega, Marcos Fioravante, decidimos entrevistar a professora Bianca Knaak sobre a Bienal do Mercosul. Estávamos escrevendo sobre os seus aspectos históricos, econômicos e sociais, e aquela conversa foi tão significativa que pensamos em tentar publicar uma versão mais curta na revista Panorama Crítico. E deu certo! A entrevista foi publicada na edição n.º 7 (KNAAK, 2010).
Essa possibilidade criada pela Panorama de fazer circular o que os estudantes estavam produzindo para além do âmbito das disciplinas me fascinava. O cofundador da revista Alexandre Nicolodi, que realizou a sua graduação em Artes Plásticas na UFRGS entre 2005 e 2009, comentou que tinha colegas que escreviam textos sobre uma determinada obra de arte, mas que não tinham o que fazer com eles. As pessoas estavam produzindo e não tinham onde publicar (NICOLODI, 2020). A revista buscava justamente dar um espaço para esse posicionamento: “[…] eu acho que a nossa grande questão foi, desde o início, se posicionar, porque o se posicionar é um movimento crítico, é um pensamento crítico” (NICOLODI, 2020), pois aqueles que estão cursando a graduação também compõem o conjunto de atores da arte e deveriam ocupar o espaço nos debates da área.
Não é à toa que, em 2011, foi para a Panorama que submeti a minha primeira crítica de arte, que buscou mostrar como as produções de Letícia Lampert e de Rafael Pagatini, artistas que estavam na época cursando mestrado no PPGAV-UFRGS, propiciavam uma experiência expandida do tempo contemporâneo (MOTTER, 2011). Essa entrevista e a crítica permitiram observar que os periódicos de arte, as pessoas e as obras se inter-relacionam. Lembro-me da ideia de que humanos e não humanos interagem entre si, de maneira a transformar sentidos (LATOUR, 2007). A existência de uma revista que tem por missão “viabilizar um lugar democrático, criterioso e independente acerca do pensamento crítico e teórico na área artística” (NICOLA; NICOLODI, 2010) permitiu que eu visse que minhas trocas com outros atores da arte (artistas, historiadores e produções artísticas) poderiam ser transformadas em textos que teriam seu espaço, como as obras que têm seus lugares de exposição. Essas relações, atravessadas pela revista, se desdobram pelo significado de terem sido materializadas naqueles números da Panorama Crítico. A professora e amiga Bianca Knaak, desde então, esteve presente em todas as etapas da minha trajetória. O Rafael, já o acompanhava em seu interesse pela gravura; e a Letícia, pude continuar a refletir sobre a sua produção em um outro texto realizado para a Arte & Ensaios (MOTTER, 2014).
A vontade de publicar é intrínseca à própria existência de uma revista. Yves Chevrefils Desbiolles, pesquisador de arte que consagrou uma boa parte de seus estudos à história dessas publicações, afirma que as revistas possuem um “desejo imperativo de expressar algo”2 (CHEVREFILS DESBIOLLES, 2014, p. 22, tradução da autora). Esse algo pode traduzir as motivações editoriais que unem seus criadores ou o tecido complexo formado pelas diferentes proposições sobre a arte gravadas nos seus conteúdos. A pausa das atividades da Panorama, após o seu n.º 11, levou a um sentimento de incompletude, como o corte de uma parte de nosso sistema que permitia com que essa vontade de expressar algo pudesse se manifestar.
Esse sentimento de falta ficou em mim até que, no final de 2012, a Paola Fabres me convidou para criarmos uma revista, que chamamos de Arte ConTexto (FABRES; MOTTER, 2021). Uma publicação que se adaptou no tempo para ser também aquilo que os autores estavam procurando de uma revista. Devo dizer que a Panorama Crítico, além de ter me mostrado que era possível publicar um texto enquanto estava começando a formação, me mostrou que era praticável conceber uma revista de maneira independente, sem muitos recursos e com uma estrutura que vai se formando no processo agregador de sua edição. A consciência de sua factível, contudo inusitada, existência é registrada pelos editores no editorial do n.º 10:
Na contemporaneidade, onde diversos projetos apresentam-se de maneira intermitentes e fugazes, quem poderia imaginar que uma revista virtual sobre artes visuais criada em 2008 por dois estudantes de artes da UFGRS atingiria seus vinte meses de existência? (NICOLA; NICOLODI, 2011, p.3)
A edição de uma revista desencadeia um fluxo de ações, que no caso da Panorama, poderia ser seguido a partir do relançamento da revista, da elaboração das normas de submissão e da divulgação da chamada de textos, artigos e entrevistas. Esse fluxo passa também pela espera dos conteúdos para a nova edição, pelos sons das teclas digitadas durante a escrita de cada texto. Movimento que continua na abertura e na leitura dos arquivos pela equipe; na escrita de e-mails para os autores; na criação de relações entre os conteúdos dentro da página da edição; na transformação desses em diferentes formatos para a sua posterior releitura (pdf, epub, mobi) em nossas telas com gradações de luz diversas etc.
Mas o que a volta da Panorama Crítico pode mostrar? As revistas possuem um papel de promoção de indivíduos e de grupos, mas elas atuam num âmbito muito maior do que esse, “como as obras literárias ou artísticas, uma vez publicadas, elas não pertencem mais a seus criadores. Elas vão sempre além deles.”3 (CHEVREFILS DESBIOLLES, 2011, p. 19, tradução da autora). Sei o que é ter vontade de pausar, a Arte ConTexto também teve seu período de pausa e de retomada4. Muitas vezes, me perguntei se deveria me afastar completamente da edição da revista, pela dificuldade de transformar o trabalho voluntário da equipe editorial em trabalho remunerado (um problema recorrente de publicações independentes). No entanto, penso que revistas do gênero prestam um serviço à comunidade artística, propondo lugares para a experiência da escrita, da troca de ideias, do fortalecimento de laços, com uma liberdade para se reinventarem quando preciso.
A Panorama Crítico esteve em um estado latente ao longo desses últimos dez anos para encontrar um país com sua esfera pública interconectada (RUEDIGER et al., 2014), em que as discussões políticas e artísticas ocuparam definitivamente o espaço digital. Das crises que perpassaram os debates da primeira etapa da revista, como as crises da crítica de arte, da mídia e das instituições culturais brasileiras, muitas delas, ou todas, permanecem em jogo. A essas veio se somar a crise estabelecida pela naturalização do desumano, do irracional, por uma disputa de emoções não mediadas pela crítica. A volta da Panorama se anuncia como uma atitude de resistência5 a esse contexto mais amplo que afeta os fazeres da arte. Seu poder de ação será intensificado pela abrangência que a Internet assumiu entre a população brasileira, mas será a partir da palavra, da argumentação, que ela poderá fazer frente a esses descaminhos.
- Talitha Motter é doutoranda em História da Arte pela Université de Montréal (UdeM), onde desenvolve pesquisa sobre as revistas de arte digitais atuantes no Brasil, que inclui a edição do blog Réseaux Sensibles. Desde 2013, atua como coeditora da revista digital independente Arte ConTexto.
- « volonté impérieuse d’exprimer quelque chose ».
- « À l’instar des œuvres littéraires ou artistiques, une fois publiées, elles n’appartiennent plus à leurs créateurs. Elles les dépassent toujours. »
- Desde julho de 2021, a Arte ConTexto tem uma nova equipe de editoras: Camila Savoi Borssoi (UdeM), Renata Favarin Santini (UFRJ) e Talitha Motter (UdeM).
- “Voltar para existir, existir para resistir…” (PANORAMA CRÍTICO, 2021)
Referências:
CHEVREFILS DESBIOLLES, Yves. Anch’io son editore. In: FROISSART PEZONE, Rossella; CHEVREFILS DESBIOLLES, Yves; MATHIEU, Romain; WAT, Pierre (ed.). Les revues d’art formes, stratégies et réseaux au XXe siècle. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2011. p. 13‑19.
______. Introduction. Les revues d’art à Paris, 1905-1940. Arts. Série Histoire, théorie et pratique des arts. Nouvelle édition mise à jour. Aix-en-Provence: Presses universitaires de Provence, 2014. p. 19‑26.
FABRES, Paola; MOTTER, Talitha. Revista Arte Contexto: Percursos e reflexões por meio da escrita. Revista Desvio, no 3, nov. 2021. Disponível em: https://revistadesvioblog.files.wordpress.com/2021/11/edani_paola_talitha.pdf.
KNAAK, Bianca. Bianca Knaak – Porto Alegre, mundo e lugar nas bienais do Mercosul. Panorama Crítico, no 7, p. 75‑80, ago./set. 2010. Disponível em: https://panoramacritico.com/revista/edicoes-anteriores/edicao-07/.
LATOUR, Bruno. Changer de société, refaire de la sociologie. trad. por Nicolas Guilhot. Paris: Éditions La Découverte, 2007.
MOTTER, Talitha. Letícia Lampert e Rafael Pagatini: produções artísticas que estendem a percepção contemporânea do tempo. Panorama Crítico, no 11, p. 19‑28, jul. 2011. Disponível em: https://panoramacritico.com/revista/edicoes-anteriores/edicao-11/.
______. Janelas: da passagem do tempo ao cotidiano compartilhado. Arte & Ensaios, no 27, p. 99‑102, 2014. Disponível em: http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2015/03/dossie-thalita.pdf.
NICOLA, Denis; NICOLODI, Alexandre. Editorial. Panorama Crítico, no 07, p. 3, ago./set. 2010. Disponível em: https://panoramacritico.com/revista/edicoes-anteriores/edicao-07/.
NICOLA, Denis; NICOLODI, Alexandre. Editorial. Panorama Crítico, no 10, p. 3, mar. 2011. Disponível em: https://panoramacritico.com/revista/edicoes-anteriores/edicao-10/.
NICOLODI, Alexandre. Entrevista com o cofundador da Panorama Crítico Alexandre Nicolodi. Porto Alegre/Montréal, 10 jul. 2020. Entrevista concedida a Talitha Motter. Disponível em: https://resensibles.hypotheses.org/672.
PANORAMA CRÍTICO. Panorama Crítico. 1 nov. 2021. Panorama Crítico. Disponível em: https://panoramacritico.com/revista/.
RUEDIGER, Marco Aurélio; MARTINS, Rafael; LUZ, Margareth da; GRASSI, Amaro. Ação coletiva e polarização na sociedade em rede para uma teoria do conflito no brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Sociologia – RBS, vol. 2, no 4, p. 205-234, 10 nov. 2014. DOI 10.20336/rbs.83. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18148.