Reflexões sobre o conceito de apropriação, e sua utilização como estratégia operatória no contexto de uma arte objetual contemporânea

Bruno da Silva Teixeira1

Resumo:
A apropriação e utilização de objetos como elementos de criação artística não é prática recente, tendo sido utilizada na arte do século XX, principalmente com o Dadaísmo e posteriormente no Surrealismo. Na década de 60, esta estratégia é retomada pelo Novo Realismo, a Pop Arte e outros movimentos comprometidos com as mudanças próprias do período e em antagonizar o modernismo. Nas décadas de 80 e 90 também é possível observar a ocorrência desta estratégia, entretanto com escolhas apropriativas diferentes das décadas anteriores, assumindo uma distância irônica em relação a sua própria tradição, nesse caso, o ready-made. Na contemporaneidade este modo de operação é expandido, e o artista então toma para si todo o produto ou artefato – material ou imaterial – que julgue serem adequados para sua prática artística sem necessariamente externar preocupação com algum direcionamento, tradição ou outro tipo de enquadramento em algum segmento anterior.  Neste sentido, este texto articula algumas considerações amplas sobre a apropriação, trazendo como apontamentos principais as reflexões  de autores como Arthur Danto, Hal Foster, Tadeu Chiarelli,  Nicolas Bourriaud e Claude Lévi-Strauss.

Palavras-chave:
Artes visuais; Arte contemporânea; Apropriação.


As ações de apropriação podem ser elencadas como uma das características mais relevantes e emblemáticas da arte do século XX, sendo possível observá-la em muitos momentos e em diferentes atividades, principalmente durante os processos de mudança e também da sedimentação do conhecimento artístico contemporâneo.  A esse respeito, importante destacar que a apropriação se definiu nos discursos sobre arte basicamente como uma prática que conduz à produção de trabalhos artísticos utilizando-se do conteúdo material produzido pela sociedade, ou seja, com recursos oriundos de um universo, muitas vezes ordinário e cotidiano.

Entretanto, esta definição é relativamente parcial, pois a apropriação não é definida apenas como de natureza puramente material – muito embora esta seja vista com maior frequência em trabalhos artísticos ao longo da história – podendo se reportar também a ideias e conceitos, bem como a qualquer outro tipo de experiência. Também não necessariamente toma para si apenas produtos e materiais do universo cotidiano, pois tal atividade da mesma forma se propõe a apoderar-se de artefatos pertencentes à mesma esfera de valores, tais como objetos artísticos feitos por outros, por exemplo, ou produtos de natureza análoga como os derivados da indústria áudio visual, da moda, design entre outros.

No espaço específico da arte, observou-se esta proposta a partir das ações ready-made de Marcel Duchamp2, ainda no início do século XX. Este termo foi escolhido por Duchamp para designar os objetos produzidos em série, que ele expunha em galerias de arte – ou outros espaços institucionais – em lugar de pinturas ou esculturas “tradicionais”. De acordo com Batchelor (1998), Duchamp trabalhava estes objetos apropriados – ainda que minimamente – ao apresentá-los em um contexto anti-convencional, ou seja, ao colocar o objeto ordinário – ou uma composição feita a partir de um conjunto destes – na galeria de arte, por exemplo, ele se tornava “deslocado, alheio, anômalo.” (ibid, p. 35).

Ao propor este deslocamento, Duchamp então levanta a questão acerca dos mecanismos que constroem e articulam o sistema da arte. A atenção não é voltada para a beleza de tais objetos expostos, mas sim para as convenções, expectativas e pré-conceitos relativos à ideia comum do que seja arte – ou não – bem como para o modo como o sistema classifica, respalda e avalia as produções artísticas.

Estas ações evidentemente transformaram as relações e concepções artísticas do período e suas reverberações estão fortemente presentes em diferentes proposições artísticas na contemporaneidade. As estratégias de apropriação tendem a problematizar dois valores ainda muito arraigados no senso comum, sobre a arte e o objeto artístico. Estas ações acabam por desestruturar a noção prévia, por assim dizer, de uma arte pautada em conceitos de originalidade e de valorização do gesto criador do artista.  Desse modo, conceitos de originalidade e autoria, por exemplo, acabam sendo subvertidos, e outros espaços de significação são então abertos.

Em relação a estes espaços abertos – principalmente na estruturação da dialógica entre a obra e o objeto – Danto (2010), enfatiza justamente o surgimento de um problema de interpretação, desencadeado pelo fenômeno da apropriação e deslocamento dos objetos ordinários para a esfera dos objetos artísticos. Danto coloca que a interpretação das obras de arte é o cerne do exercício da crítica de arte, onde a busca pelo significado de uma obra reside em mostrar como o objeto em que o significado está corporificado efetivamente o incorpora.

Esta busca de entendimento se potencializa com o objeto apropriado e deslocado, visto que este traz consigo uma série de significações próprias – além obviamente de suas atribuições funcionais primeiras – e que agora não mais operam a partir dos mesmos esquemas, ou seja, estão agora em uma espécie de “limbo”, entre o que significavam e o que significam, ou que ainda podem vir a significar.

Creio que a noção de significados corporificados capta um pouco do que aprendi com minha mestra, Susanne K. Langer, que em seu melhor livro Philosophy in a New Key, estabeleceu uma distinção entre o que chamou de formas discursivas e formas presentificadoras. As obras de arte presentificam seus significados, enquanto o significado de uma descrição é exterior a esses significados. Geralmente o sujeito de uma frase refere-se a algo que está contido na extensão do predicado da frase, pelo menos no caso de orações declarativas simples. Grande parte da filosofia analítica associa-se a à semântica das formas discursivas. Mas a chave para entender a corporificação, pelo contrário, é a interpretação. (DANTO, 2010, P. 18-19)

A apropriação e deslocamento de objetos ordinários para um contexto artístico se tornaram uma questão chave da arte moderna, e que permanece ativa nas discussões contemporâneas sobre o assunto. Essa indistinção entre o objeto apropriado e deslocado com o objeto que permanece em seu estado “natural” foi durante muito tempo alvo das investigações de Arthur Danto, que a partir da filosofia analítica – embora em dado momento tenha se distanciado desta vertente de pensamento, buscando apoio nas obras de Nietzsche, Hegel e também Sartre – buscou esclarecer as condições de instauração deste fenômeno. Na visão de Danto (2010), estas diferenças (razão) não seriam de ordem perceptiva, visto que ambos (objetos artísticos e objetos ordinários) são idênticos, logo tais particularidades tinham de ser necessariamente invisíveis.  

Tendo como foco de suas análises a Brillo Box de Andy Warhol, Danto (ibid, p. 17) enfatiza que uma primeira acepção estruturada naquele momento a esta questão, foi a de que, muito embora ambos os objetos fossem visivelmente iguais, eles possuíam causas distintas. A caixa de sabão industrial era originalmente de função prática: acondicionar, identificar e transportar o produto até o ponto de venda, ao passo que a Brillo Box de Warhol descendia da evolução da teoria da obra de arte, bem como dos desdobramentos da história da arte recente até então.

Importante destacar que as caixas de Warhol não eram de papelão como as industriais, eram de madeirite (compensado), montado e com a identidade visual diagramada exatamente como seu análogo industrial. Ali a apropriação não era “direta”, como no caso dos objetos de Duchamp, mas se estruturava como uma cópia fidedigna do elemento original. Este modo de operação era muito utilizado por Warhol – bem como outros artistas da Pop Art na década de 1960 – que adotava o uso de técnicas de reprodução da imagem, como a serigrafia, afastando assim justamente as ideias historicamente pré-concebidas acerca originalidade e autoria, ficando mais próxima do universo industrial, da produção em larga escala.

Essa técnica foi bastante explorada pelos artistas que se apropriavam de todo material amplamente conhecido, produzido e presente na cultura de massa, como fotos de revistas, imagens de histórias em quadrinhos, fotografias de personalidades entre outros. A partir da reprodução de algo já existente, era proporcionado ao mesmo tempo um reconhecimento e um estranhamento, pois as imagens estavam deslocadas de seu veículo e propósito original. A imagem original, saturada pela sua exposição em massa, era facilmente reconhecida pelo apreciador da obra, o reconhecimento imediato servia como uma conexão instantânea entre espectador e obra.

Danto na busca por trazer a luz o debate acerca destas condições de instauração do objeto deslocado, lançou mão de diversas hipóteses e pontos de vista diametralmente opostos, propondo e em seguida refutando, apontando impasses filosóficos que não permitiriam a adesão total de uma ou outra teoria a esse respeito de modo que, mesmo sem chegar a uma definição que pudesse sustentar de maneira unívoca – e talvez até de forma pragmática – as diferenças entre o objeto deslocado e o objeto ordinário, o tronco “comum” ao que o autor chega é o da consciência.

Em minha opinião, uma obra de arte tem um grande número de propriedades muito diferentes das que caracterizam um objeto que, apesar de materialmente indiferenciável dela, não é uma obra de arte. Algumas dessas propriedades podem muito bem ser estéticas, tendo a faculdade de provocar experiências estéticas ou a possibilidade de ser consideradas “preciosas e valiosas”. Mas para reagir esteticamente a essas propriedades é preciso antes saber que o objeto em questão é uma obra de arte… (DANTO, 2010, p. 151).

Danto sugere a existência de duas ordens opostas de reações estéticas. Uma quando esse está diante de uma obra de arte, e outra quando em frente a um objeto comum. Em certos casos, é possível ter reações sensoriais diferentes a um mesmo objeto dependendo da maneira como ele é apresentado. Mas o objeto não adquiriu qualidades, elas já estavam lá. Nesta perspectiva, uma obra de arte – especialmente a obtida por meio da apropriação e deslocamento – não pode ser reduzida ao seu suporte material e simplesmente ser identificada com ele, pois se assim fosse, ela não teria condições de ser diferente do objeto ordinário.

Neste sentido, Danto aborda os fatores da apreciação, e seja qual for o seu estatuto, ela será sempre uma “função da interpretação” (DANTO, 2010, p. 174), ou seja, a interpretação teria a capacidade de determinar as relações entre uma obra de arte e sua contraparte material, e como isso não se aplica aos objetos ordinários, a reação frente às obras de arte pressupõe então um processo cognitivo que não é necessário para a reação a objetos comuns, o que na visão de Danto – em especial ao ReadyMade e demais práticas apropriativas – demonstrariam um complicador justamente por serem indistinguíveis – objetos mundanos e objetos artísticos – e ambos se parecerem com “coisas reais” que talvez fosse necessária uma “desinterpretação” (Ibid, p. 174), quando da ocorrência do inverso, ou seja, tomar um objeto comum como objeto de arte.

Danto aponta ser importante considerar que a reação – de ordem estética – pressuporia a distinção (entre o que é, e o que não é obra), e que, portanto não poderia simplesmente ser incluída na definição de arte, logo sugere que exista uma necessidade de recorrência a um saber psicológico, ao invés de um saber filosófico, pois, para que se sustente tal teoria – em relação ao modo diverso com que se apreendem objetos artísticos de objetos ordinários – é necessário saber se de fato existe essa diferenciação de apreensão de natureza inata.

Tal embate se tornou crucial na questão proposta pela Brillo Box de Warhol, de modo semelhante, mas diferente do ready made de Duchmap.  Ainda que as apropriações da Pop Art não carregassem os mesmos ideais dadaístas atrelados a não conformidade, militante e abertamente hostil contra a ordem social estabelecida – argumentativamente justificável pela carnificina da guerra, e em contraste com as representações dos Puristas franceses, aos quais os dadaístas se referiam como exemplo máximo da decência da sociedade burguesa ao desconsiderarem os horrores dos combates – as características e intenções apropriativas dos artistas da Pop trouxeram ao centro das discussões uma espécie de “estética do descartável”, dedicando-se a representar os ícones da cultura consumista americana do pós guerra, fosse em cumplicidade com ela, ou em uma tentativa de propor uma forma de crítica aos acontecimentos sociais do período.  Seja como for, o objeto apropriado e deslocado – em uma acepção dadaísta, ou a partir das intenções da Pop – demonstra extrema complexidade conceitual por coabitar entre o ordinário e o artístico e desse modo não permitindo o exercício de uma interpretação clara acerca de seus propósitos.

Para Foster (2014), a opção pelo modo de produção em série adotado pelos artistas da Pop, desencadeou uma forma diferente de consumo, cujo objeto não é tanto o uso dessa mercadoria ou o significado daquela imagem, mas sua diferença como signo de outros signos, sendo esta diferença “fetichizada”(ibid, p.92).  O aspecto factício, diferencial, codificado e sistematizado do objeto.

Neste sentido, é nítida a importância da compreensão do sistema de produção industrial como um elemento inerente às práticas apropriativas na arte, visto que a “matéria prima” é obtida pelos artistas por meio deste. Logo, também merece destaque a percepção da consequente dissolução das fronteiras entre o consumo e a própria produção, pois ambas atuam como engrenagens do mesmo sistema.

Foster (ibid, p. 92), aponta que  depois que a produção em série e o consumo diferencial entraram na arte dessa maneira, as distinções entre formas altas e baixas diluíram-se, deixando de ser um mero empréstimo de imagens ou compartilhamento de temas.  Ainda segundo o autor, tal distinção que poderia se apresentar evidente na Pop, e também no Minimalismo – mesmo que de modo incipiente – ficou praticamente total no que Foster chama de “escultura-mercadoria.” O que acarreta outra situação que perpassa questões de similaridade, pois adentra também nas relações capitalistas de consumo, ou seja, por apropriar-se de objetos oriundos deste sistema de produção, arte e o consumo tornam-se um, sendo dispostos como signos de troca e, por consequência, apreciados e consumidos como tal.

[…]  Essa escultura-mercadoria também se desenvolveu a partir da arte da apropriação e também assumiu uma distância irônica em relação a sua própria tradição, nesse caso, o ready-made. […] a esculturamercadoria tratava o ready-made como abstração e tendia a substituir a arte pelo design e o kitsch. (FOSTER, 2014, P. 91)

Um dos aspectos da apropriação, e consequentemente a apropriação dos signos pertencentes ao objeto apropriado, é que tanto no ato da tomada para si, quanto da bricolagem destes objetos, seus signos são reposicionados de outras formas, e que na perspectiva de Foster, podem se “distanciar do objeto de modo provocador” (Ibid, p. 97), podendo ser apresentado diretamente como mercadoria – como em um movimento contra o consumo mas que, paradoxalmente, não deixa de ter adesão ao mesmo – ou em uma situação onde a “aura” perdida da arte é substituída pela falsa aura da mercadoria – também paradoxal, pois a própria mercadoria foi responsável pelo definho da arte. Seja qual for o caso, em ambas as tendências, a ideia do ready-made segundo Duchamp é invertido, mesmo que o objeto deslocado ainda se apresente indistinguível de um objeto ordinário.

Na visão de Foster (2014), a maioria dos ready-mades de Duchamp propunha, ainda que de modo anárquico, que objetos de valor de uso substituíssem objetos de valor estético e/ou de valor de troca/valor de exposição. Entretanto, as “esculturas-mercadoria” se estabelecem de maneira diferente neste sistema, pois, ao contrário dos ready-mades, apresentam objetos de troca/exposição no lugar da arte de uma maneira que neutraliza o seu uso. Neste sentido, artistas praticantes da apropriação desde a década de 1980, como Jeff Koons ou  Haim Steinbach, por exemplo, invertem Duchamp justamente em relação ao valor de uso e mais, indo além também no tocante à significação do consumo, explorando as possibilidades contidas na apropriação de itens pertencentes ao  universo do desejo consumista.

De acordo com Veneroso (2008 ),  a incorporação de signos emblemáticos da cultura de massa, da sociedade de consumo e de outros objetos e materiais “estranhos” ao trabalho de arte, têm, inegavelmente, como precedentes os ready-mades de Duchamp. Muito embora a prática da apropriação na arte sempre estivesse presente de alguma maneira, os termos “apropriação” e “apropriacionismo”, (ibid, p.796) usados no âmbito da arte, tal como compreendida hoje, surgiram no fim dos anos 70 como indicativos de uma modalidade artística que sintetizava as modificações causadas na sensibilidade contemporânea pela proliferação das imagens dos meios de comunicação de massa.

Neste sentido, tais colocações seguem a direção das reflexões de Chiarelli (2002), que ao comentar tal fenômeno – citando como exemplo a inserção da fotografia no espaço da arte, mas que pode ser ampliado para qualquer linguagem, material, produto ou artefato incomum ao campo da arte – marcava o crescimento da importância de outra maneira de encarar a arte e a vida, uma sensibilidade já muito distanciada daquela que teria forjado a modernidade.

Juntamente com a prática da apropriação, Chiarelli (ibid, p.21) chama a atenção para a presença, implícita ou pelo menos muito próxima do colecionismo – algo que Lévi-Strauss já chamaria atenção em relação aos modos de operação do bricouleur – que muitos artistas usaram durante o século XX, com vias a desestruturar os conceitos da arte então instituída. Na opinião de Chiarelli, quando trazidos para o âmbito da arte, estratégias de apropriação e de coleção tendem a problematizar dois valores ainda muito arraigados no senso comum, sobre a arte e o objeto artístico – como explicitado nas investigações de Danto sobre o tema.

Apropriar-se não significa, em princípio, apropriar-se de apenas um ou dois objetos ou imagens de uma mesma natureza, ou com uma ou várias características comuns. Apropriar-se é matar simbolicamente o objeto ou a imagem, é retirá-los do fluxo da vida – aquele contínuo devir, que vai da concepção/produção até a destruição/morte –  , colocando-os lado a lado com outros objetos, com intuitos os mais diversos. (CHIARELLI, 2002, p.21).

Para Maciel (2004), tratar de apropriações é também tratar de memória, coleções, de arquivos – instituições humanas sempre em mutação, em ampliação, e cuja dramaticidade maior é nunca se completarem um dia. O exercício de colecionar traz consigo tarefa de catalogação dos objetos e das coisas colecionadas, inventário da memória de cada um dos objetos retirados do mundo e re-signifacados em uma coleção.

Bloom (2003), destaca a característica do colecionismo na contemporaneidade com a produção em massa. Se em determinado momento histórico, a atribuição de por valor posto no objeto se dava por critérios de raridade, por exemplo, na contemporaneidade o foco de interesse é outro, ou outros, sempre em constante movimentação e alteração de valores.  Mesmo com a abundância e variedade de objetos produzidos  atualmente, também é sabido que esse número é finito, entretanto, curiosamente o colecionismo resiste como uma prática extremamente mutável, onde o jogo de interesses dos itens colecionáveis é constantemente articulado.

Bloom aponta que o ato de colecionar como projeto filosófico, como tentativa de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo, e talvez até descobrir seu significado oculto, também sobreviveu até a atualidade. […] “Um colecionador de discos, por exemplo, buscando a essência do gênio em centenas de gravações do mesmo concerto, ou do mesmo artista, dá continuidade a essa tradição, da mesma forma que alguém que tente captar própria beleza em tudo que é ‘rico e estranho’“. (BLOOM,2003, p. 61).

Para Jean Baudrillard (2008), O objeto apropriado e escolhido como componente de uma coleção, são objetos de uma paixão, a da propriedade privada, cujo investimento afetivo não fica atrás àquele das paixões humanas, paixão cotidiana que frequentemente prevalece sobre as outras, e que por vezes reina sozinha na ausência de outras. Os objetos neste sentido são – fora da prática, da instrumentalidade que se espera deles – algo diverso, profundamente relacionado com o indivíduo, uma propriedade.

Veneroso (2008) comenta ainda que diversos artistas procuraram por imagens ou ideias prontas, influenciados pelas teorias pós-estruturalistas de Roland Barthes. Mas destaca que foi partir dos anos de 1990 que um número cada vez maior de artistas de fato desenvolveu suas propostas a partir do viés interpretativo, de reprodução ou apropriação de obras, ideias, imagens, objetos, produtos ou elementos culturais, como uma resposta à multiplicação da oferta cultural, e mais indiretamente, à inclusão dentro do mundo da arte de formas até então ignoradas ou depreciadas. Na visão de Veneroso (ibid, p. 797), tais estratégias de apropriação das formas visuais existentes representam uma reação frente à superprodução de imagens no mundo. A superprodução já não é vivida como um problema, mas como um sistema cultural.

Neste sentido, as colocações de Veneroso vão ao encontro do que Nicolas Bourriuad (2009), comenta acerca da utilização do manancial de elementos oriundos da superprodução contemporânea como “matéria prima” artística. Bourriaud atenta para tal fenômeno, pois os artistas na contemporaneidade, além de utilizarem os produtos desta superprodução, também participam ativamente como produtores de novos itens, alimentando este sistema, ou seja, estão invariavelmente inseridos neste novo sistema cultural.

 A este tipo específico – contemporâneo, por assim dizer – de apropriação, Nicolas Bourriaud (2009) atribui o nome de “Pós-produção”. O autor utiliza essa definição, retirada originalmente da esfera dos produtos originados da televisão, do cinema e do vídeo, para as manifestações artísticas produzidas não a partir de um material sensível, mas sim com a utilização de objetos – materiais ou imateriais – atuais em circulação no mercado cultural, detentores de forma e significação produzidas por outrem.

A finalidade da prática da apropriação na arte contemporânea, segundo Bourriaud (ibid, p.14) porém, já não é mais questionar os limites da arte, a arte contemporânea utiliza formas que serviram nos anos sessenta para investigar limites, mas com a finalidade de produzir efeitos completamente diferentes.

Doravante, se apresentam então um conjunto de proposições artísticas – muitas vezes heteróclitas entre si, no sentido formal – mas que compartilham do fato de recorrerem a formas já produzidas, segundo Bourriaud (2009), demonstrando uma vontade de inscrever a obra de arte em uma rede de signos e significações, ao invés de tratá-la como uma forma autônoma ou original. A questão posta não corresponderia mais em o que produzir em termos de novidade, mas sim em como proceder a partir do existente, além de encontrar um modo de inserção nos inúmeros fluxos da produção contemporânea.

A prática do DJ, a atividade do internauta, a atuação dos artistas da pós-produção supõem uma mesma figura do saber, que se caracteriza pela invenção de itinerários por entre a cultura. Os três são semionautas que produzem antes de mais nada, percursos originais entre os signos. Toda obra resulta de um enredo que o artista projeta sobre a cultura, considerada como o quadro de uma narrativa – que por sua vez, projeta novos enredos possíveis, num movimento sem fim. (BOURRIAUD, 2009, p. 14).

Em relação ao fluxo de produção nutrido pelo consumo da sociedade capitalista, Bourriaud (2009), desenvolve profícua ilação entre o que Karl Marx em “A ideologia Alemã”, escreveu sobre os instrumentos de produção naturais – dependência direta do trabalho com a natureza, por exemplo – e os instrumentos de produção criados pela civilização – mescla de trabalho acumulado e instrumentos de produção, que resultariam o capital – ou seja, o produto de um trabalho. Tanto um como o outro se manteriam juntos mediados por um terceiro agente que seria a moeda.

Dessa forma, cita Duchamp como exemplo desta situação, na medida em que, ao apropriar-se de um escorredor de garrafas, ele o utiliza como um “elemento de produção.” Isso se concretiza na medida em que, além de transpor o objeto tomado para si, para o universo dos objetos artísticos, Duchamp por consequência também transpõe o processo capitalista, pois o modo de operação consiste em “trabalhar a partir do trabalho acumulado”. 

Neste sentido o artista então assume que, ao se apropriar de um objeto ou produto produzido por outros, e com isso proporcionando o surgimento de diferentes saberes tanto em relação ao objeto quanto ao ato em si, está invariavelmente se inscrevendo no mundo das trocas – algo também externado por Hal Foster acerca das características da “escultura – mercadoria” –  logo, ao produzir novas significações a partir da ação apropriativa, também aceita que, nesta condição, o consumo é também invariavelmente um modo de produção.

Ainda em relação ao consumo, Bourriaud sugere a idéia de que um determinado produto só se tornaria de fato um produto a partir de seu uso, a partir do ato de consumo.  “Uma roupa apenas se torna uma roupa real no ato de vesti-la; uma casa desabitada não é de fato uma casa” (BOURRIAUD, 2009, p. 20). Pois o consumo, ao criar a necessidade de uma nova produção, atuaria justamente como o motor e o motivo desta criação, que seria algo primordial nas ações ready-made justamente por estabelecer uma equivalência entre escolher e fabricar, entre consumir e produzir. Esta relação do produto com o uso também foi abordada anteriormente por Danto – e citado neste artigo –, em uma de suas primeiras acepções em relação ás diferenças existente na Brillo Box/ produto e a Brillo Box / objeto artístico.

Esta condição funcional inerente ao objeto é problematizada por Baudrillard (2008), quando ele apresenta a situação do objeto abstraído de sua função. Nesta perspectiva, Baudrillard aponta que usar um determinado objeto para sua finalidade determinada, trata-se de uma mediação prática, ou seja, nesta situação não se trata de um objeto, mas sim de um utensílio específico.

Baudrillard segue e discorre que nesta medida, o usuário não possui o utensílio, pois a posse jamais poderá ser a de um utensílio, pois este devolve o usuário ao mundo, é “sempre a de um objeto abstraído de sua função e relacionado ao indivíduo” (ibid, p. 94). Neste nível, todos os objetos possuídos participam da mesma abstraçãoe remetem uns aos outros na medida em que somente remetem ao indivíduo.

Esta reflexão é interessante e vai ao encontro das colocações anteriores, pois de acordo com Baudrillard, desta forma todo objeto tem duas funções: uma que é a de ser utilizado, e outra que é a de ser possuído. A primeira dependeria do campo de totalização prática, do mundo pelo indivíduo; a outra um empreendimento de totalização abstrata realizada pelo indivíduo, mas sem a participação do mundo, sendo estas duas funções de razão inversa.

Em última instancia, o objeto prático toma um estatuto social; é a “máquina”. Ao contrário, o objeto puro, privado de função ou abstraído de seu uso, toma um estatuto estritamente subjetivo: torna-se o objeto de coleção. Cessa de ser tapete, mesa, bússola ou bibelô para se tornar “objeto”. (BAUDRILLARD, 2008, p. 94).

Muito embora as ações presentes na Pós-produção proposta por Bourriaud tenham origem no ready-made Duchampiano, é verdade também que seus propósitos não se detêm exclusivamente aos desejos e objetivos de outrora, estando obviamente ligados à questões pertencentes ao espaço e ao tempo da contemporaneidade. Hoje observamos com clareza – e consigo me colocar como observador e, inevitavelmente participante – do que Bourriaud vai chamar de “cultura do uso, ou cultura da atividade” (BOURRIAUD, 2009, p. 16), onde a obra de arte, os produtos artísticos não teriam mais um fim em si. A obra agora funciona como o término provisório de uma rede de elementos interconectáveis, como uma narrativa que age prolongando e reinterpretando as narrativas anteriores.

Esta condição pressuposta por Bourriaud, onde a obra de arte contemporânea fruto de apropriações e re-significações, funciona como estrutura provisória em uma rede de elementos que se interconectam, faz lembrar algumas considerações anteriores lançadas por Claude Lévi-Strauss (1989),  acerca do trabalho do bricoleur, quando este – ao estruturar seu repertório a partir de elementos previamente escolhidos para compor seu repertório – age realmente no sentido de reconectar estes elementos, atribuindo-lhes significados e por consequência, narrativas diversas, as quais o próprio Bricoleur já não possui mais o controle.

Além de Bourriaud, outros autores que discorrem sobre o tema da apropriação, frequentemente recorrem aos termos que derivam do Bricouleur, como por exemplo  bricolage, para designar a ação “pós- apropriação” desenvolvida pelo artista. Neste sentido, Bourriaud destaca que:

A obra de arte contemporânea não se coloca como o término do “processo criativo” (um “produto acabado”, pronto para ser contemplado), mas como um local de manobras, um portal, um gerador de atividades. Bricolam-se os produtos, navega-se em uma rede de signos, inserem-se suas formas em linhas existentes. (BOURRIAUD, 2009, p. 16).

A respeito desta atividade de re-conectar elementos diversos e “estranhos” entre si, Lévi-Strauss (1989), estrutura seu pensamento a partir do que ele irá chamar de “ciência do concreto”, instância que envolve na visão do autor maior ênfase a apreensão sensível do mundo, do que ao pensamento científico abstrato.

A bricolage, vocábulo então cunhado pelo do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1989), é definido como o resultado material das ações do bricoleur. O bricoleur, segundo o autor, seria o indivíduo que trabalha com as mãos, por meios indiretos, coletando e colecionando itens heterogêneos, utilizando todos os meios disponíveis juntamente com suas habilidades e sem um programa definido a priori, podendo seguir ou não os padrões estabelecidos na tradição a qual está inserido.

O interesse do bricoleur advém da transformação da união dos meios definidos pelo seu uso como um conjunto de potencialidades, de elementos semi-particularizados – na medida suficiente para que ele não tenha necessidade do equipamento e de todo o conhecimento acerca dos elementos escolhidos, embora também não tanto de modo que cada elemento possa apenas ser inserido em um contexto estanque e determinado –  recolhidos ou retirados segundo o princípio de que podem ser úteis em construções futuras, sejam assemblage de objetos, colagens, reorganização de fragmentos, e qualquer outro tipo de conexão com vistas a um rendimento alegórico diverso.  (LÉVI-STRAUSS, 1989).

Interessante notar que Lévi-Strauss (1989) aponta para a origem do verbo bricoleur, que em sua acepção antiga, era aplicado para se referir ao jogo de péla (algo semelhante o jogo de tênis atualmente), e também ao jogo de bilhar, à caça e a equitação, mas sempre com a ideia de indicar um movimento incidental. Seja pela péla, que no caso do jogo pode saltar desordenadamente, do cão de caça que por ventura corra em direção oposta a caça, ou ao cavalo que desvia do trajeto determinado pelo jóquei por alguma razão desconhecida.

Neste sentido é relevante destacar a importância da ideia de incidental, casual, fortuito, que consequentemente transparece em proposições artísticas feitas mediante a apropriação e conexão de elementos heteróclitos – seja em momentos anteriores da arte, bem como em proposições contemporâneas. Como dito anteriormente, não se trata de uma proposta nova, mas é valioso considerar e entender os desdobramentos desencadeados a partir destas escolhas.

A esse respeito, vale destaque para trecho do poema escrito por Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, no sexto canto de “Os Cantos de Maldoror”, e que foi retomado cinquenta anos depois por Max Ernst – pintor alemão ligado ao Dadaísmo e também ao Surrealismo, apontado como um dos precursores da técnica da colagem – no texto intitulado “Qual é o mecanismo da colagem?”, de 1936, onde ele escreve:

Uma realidade pronta, cuja ingênua destinação parece ter sido fixada de uma vez por todas (um guarda-chuva), encontrando-se subitamente na presença de outra realidade muito distante e não menos absurda (uma máquina de costura), num lugar onde ambas devem se sentir deslocadas (sobre uma mesa de dissecação), escapará por isso mesmo à sua destinação ingênua e à sua identidade; passará de seu falso absoluto, por uma série de valores relativos, para um absoluto novo, verdadeiro e poético: guarda-chuva e máquina de costura farão amor. A transmutação completa seguida de um ato puro como o do amor se produzirá forçosamente sempre que as condições se tornarem favoráveis pelos fatos dados: acoplamento de duas realidades aparentemente inacopláveis sobre um plano que aparentemente não lhes convém… […], (ERSNT in CHIPP, 1968, p. 427).

Este ato primeiro de escolha e coleta apresentado por Lévi-Strauss, ao qual ele considera como sendo uma disposição ao interesse por resíduos de obras humanas, ao que ele chama de “subconjunto da cultura”(LÉVI-STRAUSS, 1989, p.34), revela que ao escolher tais resíduos da cultura, o artista também precisa considerar que tais elementos, por já terem sido inseridos no mundo,  trarão consigo toda uma bagagem de significação própria, as quais o artista terá que articular ao longo de todo seu processo criativo.

O bricoleur precisará criar novas relações entre os itens coletados, atribuindo-lhes   dimensões diversas às originais a partir da reorganização das disposições internas desta rede de objetos. Cada um destes elementos não estará mais determinado pela sua função de origem e ganhará novos usos e arranjos, escapando a uma identidade que lhes fixa uma destinação. Esta condição – vista a partir de uma perspectiva contemporânea, com o advento da globalização e o amalgama de diferentes culturas – parece fortemente aberta em seus modos de operação, apta a absorver tudo que é produzido – material e imaterial – e em virtude do avanço tecnológico e digital, ampliar meios de processamento, troca, exposição e divulgação destes materiais em um ciclo sem previsão – pelo menos em médio prazo – de fim.

Ante o exposto neste artigo, é possível perceber que na arte contemporânea os inúmeros cruzamentos, cada vez mais velozes, são os fatores de maior responsabilidade na proliferação de linguagens, modos de operação, apresentação, suportes, relações espaço-temporais e processos criativos no campo das artes. A produção industrial atual é cada vez mais ágil, bem como os mecanismos de logística e distribuição dos produtos, de modo que todo e qualquer item produzido chega sem grandes dificuldades a qualquer localidade, seja de modo material ou mesmo imaterial.

Tal situação corrobora para o estabelecimento de uma realidade onde conceitos antes estanques e tradicionais estão sendo revistos, e a noção instaurada no senso comum de uma identidade cultural, cede espaço para a ideia de identificação, onde grupos sociais transitam livremente e podem alternar entre grupos aos quais se identificam com maior ou menor intensidade dependendo do momento ou contexto temporal.

Com o espaço cada vez mais reduzido devido às revoluções tecnológicas digitais, o tempo torna-se cada vez mais encurtado por elas, as identidades passam a consumir as mesmas mensagens, os mesmos bens, os mesmos serviços, as mesmas imagens.Com isso, as identidades vão se desvinculando, desalojando-se de suas fronteiras, operando em escala global, cruzando e ultrapassando as fronteiras nacionais, integrando, conectando comunidades e organizações em novas combinações espaço-temporais.

Neste sentido, parece assertivo apontar que este é o cenário que melhor permite a ampliação das práticas apropriativas na arte. Dentro de uma perspectiva onde nunca se produziu tanto – qualquer que seja o tipo de produto ou bem de consumo, bem como a facilidade do acesso ao que é produzido – a apropriação como modo de operação do artista é otimizada, e a rede de significações, que antes possuía um determinado alcance é expandida

Com a globalização e o livre mercado, tudo o que é produzido, sejam bens de consumo ou mesmo culturais, impõem seu frenético ritmo e sua incessante sucessão por meio da multiplicidade dos vetores materiais, fazendo com que interfiram constantemente no espaço, redefinindo sua configuração, estrutura, aparência e, sobretudo, suas relações.

As considerações postas pelos autores escolhidos para esta discussão de certo modo fluem para um mesmo caminho, seja a partir das primeiras discussões acerca da aparição do fenômeno apropriativo na arte no início do século XX, ou nas manifestações da contemporaneidade, existe um ponto comum de que, mesmo com intenções diversas em momentos específicos da arte, estes arranjos disfuncionais da apropriação, deslocamento e re-significação do objeto, produzem problemas até a atualidade para a teoria artística, como explicitado por Danto em relação a Brillo Box de Wharol, ou mesmo as características da “escultura mercadoria” proposta por Foster.  

Se com a arte de vanguarda, os objetivos eram o de transgredir a realidade da arte, trazendo elementos estranhos ao seu universo, rompendo com a aura de originalidade e autoria artística, a apropriação se mostrava como o meio ideal para essa tarefa, pois tinha a capacidade de suprir todas estas condições desejadas. Mas ao se pensar a apropriação na contemporaneidade, a percepção que se tem é de que agora o artista não mais contesta – pelo menos como outrora – mas aceita e adere ao que antes se contestava, para produzir trabalhos efêmeros e cortejar o reconhecimento e o mercado de arte. Se este “cortejo” possa vir a assumir um status de crítica silenciosa e sarcástica ao sistema das artes, e toda esta condição de “mercado”, não é possível afirmar veementemente. O que se pode dizer é que a prática da  apropriação como gesto é extremamente sedutora e contagiante, se expandiu para tudo que é produzido pela cultura e parece não demonstrar seu esgotamento como estratégia artística.


  1. Bruno da Silva Teixeira, desenhista e escultor. Doutorando em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria, na linha de pesquisa Arte e Transversalidade. Desenvolve pesquisa poética, orientada pelo Prof. Dr. Altamir Moreira, relacionada à apropriação e transformação de objetos ordinários na contemporaneidade, em uma linguagem escultórica definida como escultura objetual.
  2. Embora seja de conhecimento comum na esfera da arte a atribuição da criação do Ready-Made a Marcel Duchamp, se faz importante salientar as atuais revisões a esse respeito, e que colocam em cena a figura da artista polono-alemã Elsa von Freytag-Loringhoven. Especula-se que Elsa poderia ter sido a criadora da obra “Fonte” (Fountain), devido, entre outras evidencias, uma carta de Duchamp à sua Irmã que uma amiga havia enviado um urinol de porcelana como escultura a um salão de artes. Fonte disponível em: Elsa von Freytag-Loringhoven – Elas estão aqui Na Arte (elasestaoaquinaarte.com.br). acesso em 05/01/2023.

Referências:

BATCHELOR, David in: FER, Bryony, et.alii. Realismo, Racionalismo e Surrealismo. A arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2008.

BLOOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Record, 2003.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção – como a arte reprograma o mundo contemporâneo.  Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CHIARELLI, Tadeu. Apropriação/Coleção/Justaposição.  Porto Alegre: Santander, 2002.  Acesso em: 15 jul. 2022.

DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar comum. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2010

FOSTER, Hal. O retorno do real a vanguarda no final do século XX. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2014

LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror: poesias, cartas, obra completa. Trad. Claudio Willer. São Paulo: Iluminuras, 2008, 2. Ed.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. São Paulo: Papirus, 1989.

MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

VENEROSO, Maria do Carmo Freitas, RIBEIRO, Virgínia Cândida. Apropriação na arte contemporânea: colecionismo e memória. Anpap. 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

Entradas e saídas, atravessamentos e o artista como trabalhador precarizado – entrevista com Elias Maroso

por Panorama Crítico1

Em uma tarde escaldante e abafada do início de dezembro em Porto Alegre, me encontro com o artista visual Elias Maroso para uma agradável conversa no Multicultura Café. Após cerca de uma hora de bate papo informal resolvemos começar a registrar a conversa. Entre um café e outro, uma água e outra, a conversa abordou questões sobre sistema das artes, a poética do atravessamento, algumas recordações de outro momento das políticas culturais no Brasil, anseios, angustias, carreira e até algumas referências ao Big Brother…


Panorama Crítico: Primeiramente gostaria de agradecer por ter aceitado nosso convite de participar dessa entrevista. Vou te fazer a primeira pergunta: quem é Elias Maroso??

Elias Maroso: Agradeço o convite. Acompanho a Panorama Crítico há alguns anos e é muito bom seu retorno com entrevistas e textos. Sou Elias Maroso artista e pesquisador, nasci em Sarandi, Rio Grande do Sul, interior do interior do estado. Hoje, vivo e trabalho em Porto Alegre. Em minha trajetória, tenho passagens por vários contextos de produção artística, sejam ou autogestado, seja acadêmico ou institucional. Já me dediquei a coletivos de arte, a espaços independentes e, por outra via, costumo dizer que frequentei instituições públicas de ensino da creche ao doutorado. Além disso, venho abrindo caminhos no circuito da arte contemporânea, através de editais e eventos já consolidados. Procuro, assim, não estar em um lugar apenas.

Você possui formação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), certo?

Isso. Fiz a graduação na UFSM, seguindo lá por com uma especialização em design de superfície e mestrado em Arte e Tecnologia. Ano passado, concluí o doutorado na UFRGS, em Poéticas Visuais. Foi uma conclusão para tempos pandêmicos, feita remotamente. Ao passar pela academia do ensino público, pude desenvolver um pensamento artístico autoral, tanto em termos práticos quanto teóricos. Foi uma das saídas para dar forma e vazão à minha poética.

E tu vens atuando com arte. Poderíamos dizer que você é um agraciado por conseguir se manter só com trabalho em artes, no campo artístico. Há quanto tempo vens atuando assim?

Logo após a graduação, dividia o tempo das ideias próprias com trabalhos de ilustração e desenho gráfico. Venho buscando saídas para trabalhos autorais desde 2010. O fazer artístico propriamente dito começou a não concorrer com outras atividades da vida prática com bolsas de estudo em instituições públicas. A universidade pública garantiu certa dedicação ao meu pensamento poético via cursos de pós-graduação. Agora, há mais ou menos dois anos, começo a manter alguma rotina apenas com trabalhos artísticos. No entanto, é uma rotina de incertezas e longe de ser abastada. Da metade pro fim do doutorado, pude me dedicar, assim, apenas à arte contemporânea, com oportunidades alcançadas por um persistente caminho de tentativas, construção poética e de reconhecimento. Nada fácil. As chances vêm surgindo de um louco compromisso, conduzindo a um repertório particular e, também, à alguma visibilidade.

No ano de 2020 chegou à indicação ao prêmio PIPA, e esse ano participas da 13ª Bienal do Mercosul. Como você viu isso?

Olha, teve coisas que começaram a acontecer quando vim a Porto Alegre. A chance de visibilidade para artistas ainda acontece com mais facilidade, talvez, quando estão em capitais, infelizmente. Ainda parece ser assim, por mais que se discuta a ideia de observar ou estimular o que não está no centro. Vinculo isso a uma ideia de que os centros metropolitanos ainda são os lugares onde se observa e se estimula a produção artística, sem um certo cuidado de descentralizar, olhar para produções distantes das demandas convencionais desses centros urbanos e econômicos. Essa realidade pode ser mais arejada. Alternativas a isso devem persistir. Como disse, comecei a ser mais percebido quando vim a Porto Alegre para cursar o doutorado em artes visuais.  Acredito que o PIPA é resultado de algumas exposições que participei por aqui, principalmente a mostra do IV Concurso de Arte Impressa, do Goethe-Institut em 2019, que também resultou em uma residência artística em Berlim, no Kunst Quartier Bethanien/BBK. Isso deu certa visibilidade, sim, porque havia uma exposição bem montada, concentrando alguns trabalhos. Não era uma exposição individual. Aliás, ainda não realizei uma exposição individual em Porto Alegre.

Ainda não?

Até agora, não. O PIPA foi uma surpresa. Estava isolado na pandemia, escrevendo a tese de doutorado. A notícia chegou no dia primeiro de abril. Parecia zoeira de amigos. Acompanhava afastadamente o prêmio. Nessa ocasião, depois de receber algumas mensagens de parabéns em redes sociais, fui eu mesmo conferir e… nossa! Não imaginava, mesmo! E tem mais: não sei quem indicou. Parece estranho falar isso, mas realmente não sei quem me indicou.
De modo geral, as oportunidades foram aparecendo, mas não pularam no colo. Então, é um empenho para abrir caminhos com muita insistência.  Sou um artista que, como muitos, precisa enviar propostas para editais públicos e buscar espaços de exposição. Além do mais, também faço intervenções na rua para não estar só em ambientes fechados. Não sou representado por galeria comercial. Tive convites não muito atraentes que não aceitei. A participação na 13ª Bienal do Mercosul aconteceu via edital, através de uma chamada aberta e pública com aproximadamente 800 inscritos, se não me engano. Bem concorrido, com critérios rigorosos de seleção e avaliação cega. Não era conhecido. Comecei a ser mais observado em Porto Alegre depois da Bienal do Mercosul, mesmo.

Somente depois da Bienal?

Acredito que sim. Me parece que o prêmio PIPA deu uma visibilidade mais nacional e recebo mais convites fora do Rio Grande do Sul.

Fala da um pouco tua poética. Você falou antes, a poética do atravessamento. Discorre um pouquinho sobre.

O atravessamento é curioso! Vou contar uma anedota… Quando terminei a tese – nós precisamos destacar um conceito operatório que vai guiar a criação artística, o processo criativo – percebi que… Não, peraí! Antes da anedota, é melhor falar do conceito, mesmo. (risos)
Depois de um tempo dedicado ao fazer artístico, percebi que não consigo… não é que não consigo… percebi que naturalmente não me prendo a uma linguagem só e, também, não circulo por um lugar apenas, em um tipo de espaço somente. Para se movimentar assim, é preciso olhar a atividade artística de maneira múltipla e não hierarquizar os lugares onde apresentamos trabalhos. Percebi que minha fissura ou problemática – falando com termos polidos (risos) – é justamente fazer um tipo de processo que atravessa diferentes lugares, que perpassa, que permeia diferentes maneiras de entender linguagens e contextos de inserção. No ambiente acadêmico, eu precisei mostrar essa disposição criativa com prática e teoria. Desenvolvi um pensamento e prática que não está fixado a um lugar só, a uma linguagem só. É uma poética diferente da fixidez, voltada ao que não se encontra estático, ao que não se prende a uma identificação estanque. E, quando fiz a tese, tomei o atravessamento como um problema criativo. Desdobrei essa palavra com trabalhos práticos e reflexões ensaísticas, com intervenções em ambientes abertos e fechados, transmissores de rádio frequência que atravessam fisicamente a parede…

Você Não Está em Um Lugar Só. Registros fotográficos de intervenções de rua feitas na cidade de Porto Alegre, Brasil, com lambe-lambes de fotocópias. Da direita para a esquerda e de cima para baixo, os locais dos registros são: avenida Cristóvão Colombo, rua General João Manoel, rua dos Andradas e rua Washington Luiz. (2018-2019).

A questão do som que permeia…

Permeia, mas também veiculada a efeitos e ondas eletromagnéticas, sendo essas ondas invisibilidades que, em certos casos, atravessam fisicamente a parede expositiva. Então, digamos que, com os radiotransmissores, a pesquisa atingiu certo ápice prático, pois concretizei ao pé da letra algo que era apenas intenção abstrata, um termo abstrato – o atravessamento. Concretizei no sentido de um fenômeno físico de atravessamento. Agora, voltando à anedota, quando terminei a tese, foi engraçado, porque o atravessamento era o meme internético da vez, por causa do BBB! (risos)
A participante Lumena falava bastante em atravessamento, lembra? Fiquei anos e anos em cima dessa palavra e pronto: desenvolvi a tese com uma palavra memetizada! (risos) Foi bom para não me levar tão a sério e, outra coisa, para buscar sinônimos. Hoje, poderia sintetizar essa prática como um fazer criativo que não é disciplinar – num sentido que não é de todo obediente e, ainda, no sentido de não isolar a arte numa disciplina do conhecimento. A partir da arte, saio da arte. É um movimento de sair da arte através da arte. Uma poética de entradas e de saídas. Toda vez que saio de um lugar, entro em outro pra construir uma outra saída, em um movimento que não para! Toda saída é entrada para uma outra saída. É um circuito, digamos assim. Em alguns trabalhos, literalizo esse circuito. O elétrico pode se conectar a uma rede energética que atravessa vários espaços abertos, fechados, públicos ou privados. Também, a eletrônica é utilizada como uma metáfora de pensamento diagramático, pois, antes de recorrer à eletricidade, já desenhava muitos diagramas e mapas mentais com termos abertos, conectando palavras e notações gráficas. Teve uma fase do processo em que fazia muitos diagramas mentais e não via trabalhos nisso. Achava que pertenciam à etapa anterior dos trabalhos, seu planejamento. Aí, comecei a olhar pra esses diagramas e pensei: – “como é que posso transformar isso numa proposta artística?”. Assim, passei a eletrificar palavras e desenhos. Passei a redimensionar anotações de caderno como desenhos em cobre e latão fotocorroídos. Uma mistura de técnicas da gravura em metal e da eletrônica. Comecei a eletrificá-los com pulsos elétricos, conectá-los entre si e à rede elétrica dos espaços. Mais avançadamente, segui com a montagem de sistemas eletrônicos. Um transmissor é um diagrama eletrificado. Uma placa é um diagrama esquemático que, partir de uma circulação elétrica, causa um fenômeno físico. Seria como criar uma tradução da eletricidade pensante para uma energia em atividade. Por isso, a elétrica hoje ainda é um interesse. Ela marca a presença de um entusiasmo pensante, que sempre esteve nas coisas que faço. Tem, assim, um caminho mais conceitual do que tecnológico, pois comecei a querer externalizar essa eletricidade sináptica, em trabalhos artísticos.

Vista geral da instalação Diagrama 88.8 em sua segunda versão. Trabalho apresentado na exposição coletiva Não-Ver, Visar, no Espaço de Artes da UFCSPA, Porto Alegre, Brasil. Ano de 2019.

Foi o que tu quis dizer quando comentaste aqui antes, em off, que consideram o trabalho mais como arte e tecnologia, mas o trabalho é muito mais conceitual do que propriamente…

Não o conceitualismo nos anos 60, né? Porque para ser conceitualista, tem muita matéria! (risos)
Não presto reverência a escola da História da Arte. Gosto de falar isso, porque me preocupo em não parecer com coisas já feitas. Busco o estranhamento de mim mesmo no processo criativo e, na verdade, essa coisa da arte tecnologia é a maneira como algumas pessoas estão lendo o que faço. Hoje, arte, ciência e tecnologia é um campo de atuação e essa leitura sobre o que faço está fora de meu alcance. Não tenho nenhum compromisso exclusivo ou temático com a tecnologia. Aí que está, a discussão não é…

Mas a tua discussão é muito mais conceitual-teórica e não é uma discussão sobre a tecnologia…

Exato! Ainda que os trabalhos mais recentes recorram à eletrônica, faço uso de outras processos também.

Talvez pela construção toda que tu fazes das placas, dos circuitos…

Sim. Vejo tudo como uma elaboração pensante e, claro, tem coisas do processo que a gente não domina. Não sei dizer com certeza porque muitos trabalhos têm apelo gráfico, por exemplo. Alguns têm apelo gráfico, têm formas que dialogam com o desenho industrial. Outra coisa: os trabalhos que usam tecnologia não são parecidos com a produção de arte e tecnologia iniciada nos anos 90, ligada à improvisação de circuitos.

Os dispositivos que faço têm certa polidez de projeto. Talvez isso seja uma maneira de digerir poeticamente a estética dos aparelhos atuais, essa coisa fechadinha que é um celular, que é um monitor, um controle remoto. Enfim, são maneiras de processar. Tem algum encantamento junto de uma vontade de dessacralizar, de desvelar, tomar com as próprias mãos. Uma vontade de ver se consigo fazer parecido. Mimetizar essa estética de maneira artesanal. Mas, nesses casos, são coisas que não paro muito para pensar sua razão de ser. Não é necessário decifrar tudo o que se faz. Há um prazer de enigma nessa condução. O que leva a produzir trabalhos de arte tem sua parcela de crucial insconciência, de sensibilidade que não encontra palavras certas.

E de onde vem este domínio, esse apuro técnico? Pois é tu quem montas, constrói tudo.

Aprendi sozinho. Tenho amigos técnicos que me dizem se o que estou fazendo vai ou não explodir! (risos) Boa parte de meu conhecimento técnico é autodidata, aprendi tudo sozinho. Hoje, uso quase nenhuma linguagem que aprendi na universidade. No tempo de formação, não tinha aulas de arte digital ou eletrônica, por exemplo. O 3D, a modelagem 3D, aprendi sozinho. Tenho uma coisa de… essa coisa de atravessar, também é sobre atravessar a mim mesmo. Muitos projetos me desafiam pensar soluções inéditas. Eu tenho certa fissura, uma empolgação, um entusiasmo de superar a mim mesmo. Isso vai me deslocando do que já fui…

De um lugar tu entras em outro, e em outro…

Isso! Tu entendeu a ideia! (risos)
O atravessamento, ele é hoje quase um termo clichê acadêmico, mas, quando usei em minha pesquisa, me referia ao movimento de atravessar fisicamente um espaço, uma disciplina ou limitação particular. Por isso, também é sobre a empolgação de uma conquista, quando dou forma ao que antes nunca tinha feito. Tem certo gosto pela dificuldade. Isso me exige abrir caminho para outra plasticidade cerebral, outra motricidade fina. Quando estava pesquisando durante o doutorado, não sabia exatamente com quais palavras expressaria essa inquietude. Ainda não tinha uma palavra que marcava essa vontade de fazer várias coisas e de não estar em um lugar só. Em certo momento, comecei a escrever com a mão esquerda, mesmo sendo destro. Fazia isso, porque tinha a sensação de que precisava aprender um abecê novo e, nesse aprendizado, sair com outra escultura cerebral, outros diagramas sinápticos, outras possibilidades de linguagem. Então, sim, todos os trabalhos têm desafios técnicos e, certamente, desafios conceituais.  Procuro trabalhar com essa dupla via da pesquisa linguagem e materiais ressoarem no conceito, na intenção abstrata. Por exemplo: faço fotocorrosão em metais, pois quero que desenhos de caderno conduzam eletricidade física.  Sempre busco ter uma ressonância entre o uso da linguagem e o conceito, nem que seja o próprio estranhamento de um recurso – sendo proposital esse estranhamento. Fico muitíssimo tempo em cima das formas. Procuro balancear a intenção e como isso se apresenta em particular. Tento equilibrar. Existe uma pesquisa técnica, um apuro técnico e isso não sei explicar o porquê…

Até estética. Pode ser uma placa ou um circuito, mas notamos que há a preocupação estética.

Nisso que você se refere, eu vejo próximo a uma generosidade.  Admiro muito artistas que não recorrem ao virtuosismo técnico e conseguem fazer trabalhos consistentes. Não sou dogmático da técnica, não é isso. Os trabalhos saem assim. O que vou fazer? (risos) É como os João-de-Barro: fazem a casa daquele jeito, pois é uma expressão de sua vida. Ainda faço desse jeito e não acho problemático. Rende trabalhos interessantes, do meu ponto de vista. No mais, vejo a preocupação estética como uma generosidade para quem não é iniciado nas artes. Porque há um apelo visual, além de outras características para se notar. Abro, assim, mais portas de entrada para que vai ganhando mais complexidade. Quase como servir um prato bem cheio. Fazer um bom e generoso prato de comida. Por exemplo: tem comidas boas com entrada, tem os pratos… e lá vamos nós com analogias gastronômicas! (risos) Enfim, vejo como uma forma de convidar pessoas não iniciadas, porque gosto de atingir diferentes públicos. Alguns trabalhos são mais cifrados e outros não.
O trabalho da Bienal é mais codificado e tudo bem ser assim, pois se encontra em contexto que favorece esse tipo de olhar. Tem mediadores, texto e um ambiente propício para isso. Por outro lado, quando coloco trabalhos na rua, processo outros apelos, busco atrair de uma forma diferente. Imagino a passagem de transeuntes desavisados, pois não é anunciado, está sem legenda e até mesmo assinatura. Com todas essas práticas, observo os espaços, essa coisa de entrar e sair de um espaço. O que seria entrar em um espaço? No meu entendimento, um lugar específico pode ser lido como uma atmosfera de códigos: quem aqui frequenta? Quais costumes são movimentados? Quais símbolos são comuns? Fazer essa leitura, observar os códigos que regem um espaço é o que eu entendendo como uma entrada. Entrar em um espaço é ler seus códigos internos para falar sua língua com voz própria, criar a própria saída. Todos meus trabalhos partem, então, de uma entrada, de um entendimento do contexto onde se inserem para, a partir desses próprios atributos, produzir uma saída criativa. Sair do código através do código.

… que é uma entrada para outro lugar.

… que, daí, é uma entrada para outro lugar! Aí é que tá!  A saída nunca vai ser a última saída, entende? Nunca tem a última saída. Isso também é bom para pensar o cotidiano, a atuação política… é bom até mesmo para se posicionar diante do cotidiano capitalista. Você tem que entender o cotidiano, ler os códigos e, a partir deles, construir sua saída para continuar vivendo. Só que qualquer saída, seja qual for o espaço desde onde foi elaborada, irá, cedo ou tarde, ser sobrecodificada. Assim que realizada, a saída se tornará mais um código interno ao espaço. Aí, você precisa criar outra saída e outra e outra sucessivamente.  Adoto esse princípio de circuito, que entrelaça entradas e saídas, como forma de pensar o fazer artístico e a vida prática, entende? Acho que é por isso que consigo encontrar diferentes públicos, sabe? Ligando à vontade de aprender novas processos, tem uma coisa de pensar e fazer ao mesmo tempo, o que também me leva a pensar na artesania da linguagem.
Minha mãe e familiares próximos se dedicaram a vida toda a trabalhos artesanais – costura, tricô, crochê. Talvez seja por isso que eu tenha essa coisa de fazer com as mãos. (risos) Essa manufatura ainda é muito presente. É uma poética pensante e manual ao mesmo tempo, diferente do conceitualismo estadunidense dos anos 70, por exemplo. Claro que tem trabalhos em que alguma parte não fiz. Me refiro a dominar os processos de execução ou de prototipagem. Mas não acho um problema terceirizar a feitura de certas etapas, não. Até estou estudando construir máquinas de desenho, além de aprender a usar impressoras 3d.

Criptocromo – Obra exposta durante a 13ª Bienal do Mercosul, 2022. Fotografia de Thiéle Elissa.

Só por curiosidade, esse trabalho da 13ª Bienal do Mercosul, o Criptocromo. Da ideia inicial até a coisa pronta… qual o tempo, como é que surgiu? Digamos assim, da ideia até a obra exposta.

A instalação Criptocromo (A Cor Escondida) veio de uma pergunta, quando comecei a fazer trabalhos que emitiam ondas invisíveis e que atravessavam as paredes.  Me perguntei: “será que algum equipamento ou alguma criatura consegue visualizar esse fenômeno que o olho humano não enxerga”? Então, cheguei a um estudo dedicado à proteína celular de nome criptocromo. Foi uma epifania encontrar essa referência. Foi em 2019, durante a pesquisa de doutorado. Já havia feito uma primeira versão desse trabalho, que era praticamente um ready-made de um modelo científico. Peguei uma representação científica e coloquei no contexto de arte. Adaptei esse esquema para a localidade de Porto Alegre, pois o conceito do trabalho é simular como os pássaros enxergam o magnetismo terrestre, como eles se localizam visualmente em diferentes pontos da Terra. É muito interessante pelo detalhe de que a solução visual desse estudo científico remete a algumas formas que venho trabalhando há um tempo. Assim, tem uma boa semelhança, uma coincidência, uma sorte. Por isso, gerou um efeito em mim, pois meu repertório visual poderia se expandir para outras maneiras de perceber o mundo. Já o tinha mais ou menos resolvido como trabalho durante a tese, onde o fiz em uma escala menor e para outra localidade – eram fotografias de outro ponto da cidade.
Para a Bienal, propus uma sofisticação dessa proposta, junto de uma rigorosa revisão científica. Sua escala aumentou, é uma instalação grande. Agora, depois da mostra, a instalação foi doada ao acervo do MARGS (Museu de Artes do Rio Grande do Sul).

E quanto a produção dele para a Bienal?

Estive atento durante toda a produção. Então, foi tranquilo. Nossas produtoras foram incríveis – a Tais Cardoso e o Edu Mendonça. Estiveram comigo em todo o processo. Os curadores também estiveram comigo durante a residência TRANSE, a dupla Ío – a Laura Cattani e o Munir Klamt. Teve algum perrengue, mas nada demais. Foi emocionante em outro sentido, sem problemas. Depois de muito tempo aprendi… depois de algum tempo passando por perrengues pesados de produção com outras realizações, tenho algum traquejo com processos complexos. Aprendi a administrar o tempo e as etapas de produção. Além do mais, quando tem profissionais de produção é bem melhor, né? Algumas partes desse trabalho eu mesmo fiz, pois não tinha ninguém que sabia fazer. No caso, se tratava do dispositivo agregado no trabalho – o dispositivo sonoro. A instalação reproduz o canto de um pássaro a partir da vibração eletromagnética do próprio papel da fotografia. É um dispositivo que testei, já o tinha experimentado em outros trabalhos. Nessa ocasião, aprimorei seu sistema, testei em um laboratório de eletrônica acompanhado de um técnico engenheiro eletricista. Meio que propus a instalação com o aparelho pronto.  Desenhei suas peças, instalei tudo com as próprias mãos. É a coisa do faça você mesmo, sabe? Isso tem uma memória punk de coisas que fiz na vida, desde fanzines à autogestão de projetos culturais…

Múltiplo SD. Impressão off-set sobre papel. Formato expositivo para artistas convidados. Dimensões de 10 cm x 5 cm x 2,5 cm. Desde 2009.

Pegando o gancho do “faça você mesmo”, desse histórico punk. Voltando lá para o ano de 2009. A Sala Dobradiça, como se deu? Qual a motivação por trás? Só para localizar, ela existiu em Santa Maira. Fala um pouquinho o que é, o que foi… ela não deixou de ser ainda, mas está, digamos, no limbo, em suspensão…

Ela permanece em latência! (risos)

Latência! Agora sim! Era essa a palavra!!! (risos)

A Sala Dobradiça foi um espaço de arte que não possuía um espaço físico fixo. Ali que também começou a moldar muito a ideia de não estar em um lugar só. O primeiro espaço da Sala Dobradiça foi seu próprio logo, para ter uma noção. Seu logo é um volume espacial aberto em que a gente convidava as pessoas a recortar, dobrar e colar. Convidava a fazer você mesmo ou a fazer com a gente, um espaço da arte. Nisso, essa coisa do faça você mesmo está até hoje presente em minha prática. Quase todos meus trabalhos são replicáveis, podem ser feitos em série e tem código aberto.

Inclusive o bloqueador de celulares…

Sim, o bloqueador de celular, rádios transmissores, todos eles podem ser replicados materialmente, pois têm uma formatação de múltiplos. Quer dizer, então, que eles têm a potência de serem repetidos. Se um deles for efêmero ou até se quebrar, posso fazer de novo.  Não trabalho muito com essa ideia de unicidade que uma pintura pode ter pelo gestual, por exemplo; o gesto único que não pode se repetir… ainda não tem muito disso. Até nos meus desenhos mais gestuais, eu os transformo em ensaio gráfico digital para serem replicados.  Não sei explicar direito o porquê, mas tenho essa coisa de fazer trabalhos potencialmente “não únicos”, que podem ser multiplicados. A maioria deles são de código aberto. A Sala Dobradiça introduziu muitos desse pensamento. Começamos em um porão de casa noturna, minúsculo e bem úmido – o Macondo Lugar de Santa Maria. Tanto que o nome Sala Dobradiça veio porque tínhamos que baixar cabeça para não bater numa viga do teto, de tão pequeno que era o lugar. Tínhamos que dobrar o corpo…

Era tu e a Alessandra…

Alessandra Giovanella, minha parceira das artes até hoje! A ideia da Sala Dobradiça era ser um espaço de arte que tinha ou tem – está em latência! (risos) – como problema o próprio espaço da arte, essa era a questão. Pensávamos diferentes formatos de exposição e convidávamos artistas para expor com a gente. Houve formatos de espaço que até não possuíam parede. A última versão da Sala Dobradiça foi quando criei um rádio transmissor que poderia ficar dentro dessa caixa vermelha, desse pequeno volume espacial que é o logo-múltiplo Sala Dobradiça. Então, o último trabalho da Sala Dobradiça foi um radiotransmissor que entrava nessa caixa do “faça você mesmo”, entendendo que a Dobradiça é mais uma intenção indisciplinada ou uma espacialização, do que um lugar fixo. Assim, poderia ser ativada em qualquer circunstância. Isso vincula um pensamento da atividade arte mais ligada a uma maneira de mexer com os códigos de um determinado contexto do que entender a arte como uma área do conhecimento fechada em si mesma.
Além disso, tinha outra coisa: geralmente o público da arte contemporânea está nos centros metropolitanos, nas capitais, ainda nesse pensamento centralizado, digamos assim. A Sala Dobradiça é uma iniciativa de arte no interior do RS. Isso muda bastante a abordagem com o público e a maneira de articular processos da arte contemporânea.

Última versão da Sala Dobradiça.

E estamos falando de Porto Alegre que é uma capital periférica…

É uma capital periférica, mas, como posso dizer, discursivamente muitas produções e espaços tentam replicar centros mais influentes. Esse pensamento faz olhar mais para São Paulo do que multiplicar alternativas descentralizadas. Procura replicar conceitos já esquentados. Lembro que, certa vez, o argumento curatorial de uma exposição aqui em Porto Alegre – não vou dizer qual (risos) – era porque em Nova Iorque e em Londres se discutia determinado assunto. Logo, para não estar “atrasada”, Porto Alegre teria que discutido também, né? (risos)
A Sala Dobradiça lidava com um tipo de arte contemporânea que não teria público familiarizado a receber arte contemporânea do jeito que era difundido convencionalmente – o que foi uma libertação. Tivemos que pensar a arte com práticas ligadas ao cotidiano, que intervinham no cotidiano. Isso era mais uma prática atuante na vida das pessoas e de consistência na vida das pessoas, antes de ter qualquer compromisso ou prestar reverências a uma história da arte contemporânea. Não queríamos catequizar o público de Santa Maria com a arte contemporânea, entende? Não era uma catequese, sabe? Pois também isso pode acontecer com espaços independentes. Tem espaços independentes que podem, conscientes ou não, entrar numa certa catequese da “arte mais atual”, reproduzindo acriticamente o modelo cubo branco ocidentalizado, seu interesse mercadológico, por exemplo.

Pela Sala Dobradiça, a gente não se entendia como instituído, mas instituinte. No sentido de a gente instituir novos lugares para pensar arte e praticar arte. Usávamos processos da arte contemporânea como ferramentas, não como lições a serem ensinadas. Tivemos intersecções institucionais com a Bienal do Mercosul e outros eventos institucionalizados ou não. Tínhamos conversas com espaços institucionalizados e não institucionalizados, além de artistas com diferentes formações e trabalhos. O interessante é que ali também foi um aprendizado. A Sala Dobradiça só atravessou uma instituição em determinados momentos. Não foi engolida ou entendia sua inserção institucional como o ápice de uma vontade. Em um momento de suas ações, apenas. Se esteve dentro de aparelhos institucionais, se passou pelo ambiente institucionalizado, foi porque produzia coisas interessantes fora desses contextos. O fora absoluto não existe, é necessário o dentro para que haja a própria distinção. A Sala Dobradiça esteve dentro de um ambiente institucionalizado, porque o que produzia fora era atraente; e, caso parasse de produzir coisas pulsantes fora do recorte institucional, poderia não ter mais essa interseção, essa entrada.
Observar isso foi muito interessante para pensar no meu fazer essa ideia de não estar em um lugar só, da arte ser algo que dinamiza os códigos dos espaços, de uma arte não presa a uma área do conhecimento, não presa a uma linguagem só e que pode ser entendida de múltiplas maneiras, sem hierarquias entre elas. Enfim, tudo foi se construindo aos poucos.  Não li um monte de livros e tive ideias mirabolantes. Percebo hoje uma consistência, não sei como será daqui para frente. Só que me baseio em uma consistência prática, sabe? Vem das observações das coisas que vou fazendo, me abrindo também às errâncias, incertezas, novos desafios.

Na minha visão, a minha leitura tem muito a ver com o que estás falando aqui e agora. Essa necessidade de fazer alguma coisa dentro de um cenário que disponibiliza recursos. Então, vamos fazer para nós mesmo! Não é? O faça você mesmo, que é um pouco do que estava acontecendo naquele período. Conversávamos antes da entrevista sobre isso. Havia certa efervescência. Não sei se gosto desse termo, mas acho que as coisas estavam acontecendo. Sempre lembro que Porto Alegre tinha lugares assim, São Paulo, Rio, Recife…

Existia um pensamento de que a arte não poderia estar totalmente concentrada em centros e espaços de poder. Um pensamento que estava igualmente agitado dentro das políticas públicas, com editais e fomentos nacionais. O programa Pontos de Cultura era uma excelente novidade nesse sentido. Passava por um pensamento de que a cultura era produzida pelas pessoas, de que as pessoas já produziam espaços – de artes visuais, teatros independentes, quadras de samba, ambientes virtuais, espaços da cultura e arte indígena. Enfim, diferentes formas de espaço. A Sala Dobradiça se animava por esse imaginário. Se colocava como um nó de uma rede múltipla, com diferentes maneiras de se autogestar e que se preocupava em não replicar modelos hegemonizantes de arte e do espaço da arte.

Da época, tanto que a Panorama Crítico surgiu nesse período…

Percebo que esse imaginário, hoje, tem algumas reminiscências. No entanto, há um recente enfoque aos pontos de poder simbólico.  Não digo só geográficos, mas aparelhos tradicionais ocidentalizados – o formato cubo branco, o grande teatro, o espaço legislado, etc. Um enfoque que busca construir sua validade cultural ocupando esses espaços de poder historicamente problemáticos. Para entender melhor: é, sim, necessário frequentá-los! O problema está em coloca-los como única saída de legitimação. Existem outras possíveis. E, no fim das contas, nessa via única, quem sai se fortalecendo é a própria lógica centralizadora.

Inclusive, uma coisa que é possível de se observar de um tempo pra cá, só existem as instituições consolidadas no nosso cenário. Praticamente inexistem espaços independentes em Porto Alegre…

A problemática é a seguinte: acho que precisa existir inserção institucional. É preciso ter produções dentro desses espaços, passando – vamos pensar assim – por ali. Mas que não fique somente ali ou que não tenha como objetivo criativo e primeiro só e somente só estar dentro. Só passar por ali. Às vezes, você pode desejar estar dentro de um aparelho, mas o que vejo problemático é que, naquele tempo – nós estamos nostálgicos desse tempo! (risos) – quando se estimula um espaço de uma determinada cultura, esse lugar cultiva os próprios valores, a própria legitimação do que é arte, os próprios códigos. Antes, existiam mais políticas públicas para incentivar a continuidade desses espaços gestados com dinâmicas particulares, próprias. Existia, sim, algum controle estatal, de prestação de contas e tal. Mas, enfim, isso era a saída, antes de ser uma liberdade. Não é a liberdade, mas é uma saída!
O que percebo… para você entrar num aparelho de poder já consolidado, instituído, historicamente constituído dentro de uma visão ocidental de sociedade, você precisa se adequar ao que esse contexto entende como arte. Um museu nesses moldes pode experimentar abordagens ou expografias diferentes, mas sua convenção de cubo branco é estar diante de símbolos expostos, comtemplando. A coisa da contemplação vem de onde? A gente pode até traçar paralelos com contemplação a religiosa, na tradição monástica católica. Quem praticava formas de devoção no claustro, enclausurado, praticava a chamada devoção contemplativa. Quem não se enclausurava, exercia a devoção ativa. Essa contemplação se liga ao enclausuramento, à disciplina do corpo em detrimento da atividade mental. Podemos fazer algum paralelo ao cubo branco que, em situações convencionais de temperatura e de pressão, tende ao contemplativo. Sem falar que determina um recorte disciplinar do que é e do que não é resultado do fazer artístico.
Essa forma de experiência artística é válida e potente, com certeza. Não deixo de passar por esse formato de espaço – ainda vejo necessidade. No entanto, é completamente diferente de um clube de arte negra, completamente diferente de uma escola de samba, por exemplo. Penso que a gente não pode esquecer outros lugares que genealogicamente são diferentes dos modelos ocidentalizados. É curioso que se fala em decolonização do museu. Uma pergunta sempre oportuna é a seguinte: será que a decolonização também não passa por começar a estimular pontos da arte e da cultura que não são historicamente coloniais? Jogo essa problemática!
A Sala Dobradiça estava nesse caldeirão.  Entendo que muitas produções de hoje acabaram se encastelando em aparelhos instituídos para se conservar diante do que acontece com a cultura. Por outro lado, esse movimento também pode estar ligado à ideologia neoliberal, dentro da premissa que não existiria alternativa aos aparelhos de controle e à lógica capitalista da sociedade hoje. Esse imaginário diz que, para uma arte ser legitimada como tal, precisa desses aparelhos e ter uma circulação econômica específica, na forma de produtos etc.

Aproveitando esse teu pensamento, tudo isso que conversamos até agora. Fala um pouco da questão do artista como trabalhador precarizado e a questão do cinismo. Pelo que li, nos textos em seu site, me parece que existe uma coisa ligada à outra nessa questão do trabalho precarizado do artista. Me parece, por vezes, que os artistas deveriam ter um uma maior consciência política dos papéis. Não que vá mudar o mundo, mas se enxergarem como agentes dentro de um campo e dentro de um sistema socioeconômico. Sei que talvez teus textos tenham sido um desabafo, de certa forma…

Não, não foi um desabafo. Na verdade, é uma chamada para os colegas artistas, para de algum modo, começarem a observar de outra maneira o que pode ser nossa atuação na forma de um trabalho da vida prática. Isso tem um caminho até mesmo subjetivo a ser percorrido, no meu ponto de vista, para que você realmente comece a ver como um trabalho como outros do cotidiano. Uma vez que dentro da instituição, isso ainda pode ser mudado, principalmente na universidade pública, que é um lugar a ser transformado e está sendo transformado sempre – para bem ou para mal, aliás.
Somos educados a nos pensar como artistas aristocratas. E o que isso significa? Significa seguir uma ideia de artista que não precisaria se preocupar com a vida prática. Há também um princípio que acaba negativando o trabalho do artista, tendendo à sua anulação. Também, falo de uma consciência de classe, tanto artística quando de posição social. Se a gente for analisar quem teve destaque na história da arte, muitos artistas – para não dizer a maioria – vieram de uma situação muito privilegiada social e economicamente. Há pouco tempo, com algum humor, chamamos esse perfil de “artista herdeiro”. Sem contar que majoritariamente esse ensino segue influência ocidentalizada, de gênero masculino e branco. Agora, parece que estão sendo levantadas essas questões – o que é excelente! Estamos começando a ler o contexto artístico e a atuação artística para além dos objetos expostos. É possível ver que grande parte dos artistas em atividade, nesse recorte da arte contemporânea, na verdade tem alguma segurança econômica na vida prática. Então, essas minhas posições sobre o artista precarizado é tanto para as pessoas… tem várias chamadas aí.
Uma é para quebrar a lógica de meritocracia. Por muito tempo, achava que não conseguia abrir caminhos apenas porque meu fazer artístico não tinha atingido sua excelência. Poderia não estar maduro, mas não era esse recorte. Isso não quer dizer que a gente não deve se dedicar ao fazer, mas, às vezes, conseguir um lugar no contexto artístico tem a ver com uma rede de contatos ou com certa consciência de classe da própria burguesia.  Até uso o termo burguesia, pois acho que é mais fácil de entender a ideia. Pode ser, hoje, um termo um pouco empoeirado, só que facilita o entendimento. Logo, tem a ver com a ideia de consciência de classe. Quando me entendo como um artista trabalhador, quando quero produzir arte, não consigo ser cínico com o que faço, pois é uma escolha “contracorrente”. É contra intuitiva no mundo capitalista e vindo da classe trabalhadora precarizada. Essa atuação precisa ser desejada sem cinismo para ser levada em frente. Por isso, entendo a dedicação à arte como uma posição vital, uma afirmação de vida, apesar da precarização. Por isso que não entendo arte como uma disciplina e, sim, como uma maneira de viver, além de mexer com os códigos da vida prática.  Eu preciso ter essa visão positivada do fazer artístico e da arte em si. Preciso me envolver com uma definição positivada da arte para continuar trabalhando, pois é muito difícil se manter com esse trabalho, se você não é “herdeiro”. De outra forma, sendo cínico e negativando o próprio fazer que dedico a vida inteira, não teria nem razão para isso ser feito.
Assim, vejo o trabalho de um artista precarizado que persiste, um trabalhador artista precarizado, ele comumente não vê sua persistência com cinismo. E o que seria o cinismo? É dizer que tá tudo tomado, que não adianta ou que a arte é tão somente um arauto do mercado, um conceito do ocidente a ser extinto, que não há solução à estrutura vigente, aos aparelhos instituídos. Não quero salvar ou destruir essa ideia de arte que me leva a produzir o que faço. Nós praticamos diversos conceitos problemáticos em sociedade. Por isso o movimento é sair da arte através da arte. Entrar em seus códigos internos para criar saídas vitais de linguagem. Isso pode ser praticado em outros campos, inclusive.

Ok/Cancel – Circuito Bloqueador de Celular. Placa de Circuito Impresso (PCI) e vídeo-tutorial online. Dimensões da placa: 10 cm x 10 cm. Duração do Vídeo: 5min52s. Ano de 2020.

Cair no lugar comum.

Cair no lugar comum e num lugar cínico. Qual é esse lugar cínico? É de você constatar que está tudo ruim e cinicamente continuar ali. Cinicamente aceitar os mesmos lugares e não atuar de maneira tática Tático em que sentido? No sentido de que, de repente, “tenho que passar por lugares institucionalizados para, depois, quem sabe, conseguir movimentar práticas por conta própria”. O que está acontecendo agora, de haver algumas instituições que estão olhando para o meu trabalho, é curioso. Muitos deles são políticos, como bloqueador de celular, os transmissores de rádio. Poderíamos pensar assim: “vejam só a instituição engolindo um trabalho com viés político!” Tá, mas o que ela não engole por completo é a vontade de sempre produzir saídas. Aí é que está! É aí que tenho que fazer uma outra saída, depois das anteriores. A saída que conseguir formular ficou para trás. É sempre a próxima e sempre a próxima. O movimento pode ser o de passar pelos espaços hegemônicos e não perder de vista outros contextos de atuação. Além disso, não considerar um lugar mais importante que o outro. Todas as boas oportunidades que tive, alcancei sendo inteiro às minhas ideias, antes desejar inserção em espaços no circuito hegemônico. Sem contar que faço trabalhos replicáveis, de código aberto. Muitos trabalhos que qualquer pessoa pode replicar. O que acontece comigo hoje é uma das possibilidades de inserção. No momento, são instituições científico-culturais que estão absorvendo meu trabalho…

Adquirindo?

Sim. Diferente disso são poucas coleções privadas. Às vezes, múltiplos…

Representação de galeria ainda não tens?

Olha. Ainda comercializo por conta própria. Acho que ainda é – isso é mundial, tá? Não é só no Brasil – acho que ainda é problemática a maneira como as galerias exploram o trabalho dos artistas. Digo que é uma exploração do trabalho, pois há margens de lucro na comercialização. Por isso, é uma exploração sem atribuição moral, digamos. No entanto, a maneira como as galerias trabalham ainda é problemática. Essa realidade só vai ser levantada e transformada de forma efetiva quando os artistas começarem a se entender como trabalhadores, ao invés de salvadores do mundo ou agindo como aristocratas cínicos. Precisaria de mais mobilização coletiva. Como falei, percebo que somos indiretamente levados a ver nossa prática descolada da remuneração, da vida cotidiana.

Talvez a chave de teus textos seja a questão da palavra trabalhador, o artista como trabalhador…

Trago a palavra trabalhador como uma forma de facilitar a leitura, pois considero que a preguiça é uma maneira de pensar além da produtividade. A ideia de trabalhar não se liga a um valor primordial em si. Se o fazer artístico é um trabalho, não deixa de ser um trabalho estranho para a maneira como se entende a vida hoje – o que tem sua importância. Partimos desse conceito aberto da arte para produzir inutilidades cruciais à vida, digamos. Uso essa palavra para conversar com os termos que existem e não como um conceito em si mesmo, não é isso. Até porque não dogmatizo o trabalho em si. Como falei, considero que a preguiça é uma posição também. O gesto de não dedicar energia à produtividade alienada ou o gesto de não ser um bom trabalhador a quem explora, fazer o mínimo necessário…

Algo semelhante ao quiet quitting, termo muito utilizado atualmente? Que seria fazer suficiente, o necessário na sua função em uma empresa?

Isso, o suficiente. Até porque hoje em dia a exploração do trabalho está impressionante. Existe umas coisas de agências, tem umas funções de telemarketing remotos agora – home office, trabalho de casa – em que o trabalhador tem que instalar um aplicativo no computador para controlar quanto tempo fica na frente do computador durante seu expediente. Esse aplicativo cronometra até o tempo do banheiro. Então, assim, a ideia do trabalho que digo é pra conversar sim com essa realidade…

Justamente como provocação à palavra trabalhador.

É para se contrapor a ideia de burguês né, ligar-se à disputa de classe. Ainda que sejam termos empoeirados, eles são uma chave de leitura. Termos que servem, pelo menos, para destacar as diferenças de classe social. Tem muitos artistas que entram na universidade pública, são pobres e acham que o fazer deles não tem projeção necessariamente porque não são bons o suficiente. Tem também certo perfil que emula um cinismo aristocrático, muito comum das classes dominantes. Isso é natural de artistas abastados, que não precisam pagar aluguel, pois vivem de renda, desfrutam de bons contatos comerciais por conta de seu círculo social. E, assim: que sorte que a pessoa vive de renda, o problema não é o indivíduo em si.
Você já pensou que interessante seria uma sociedade em que existisse um grupo de trabalhadores que produzissem arte e existisse um público que consumisse? Não precisaria ser um mercado com preços elevados. Me refiro a um ambiente cultural que mobilizasse um público preocupado em adquirir arte como forma de incentivo a artista da classe trabalhadora; como manutenção desse fazer capitalisticamente bizarro. Acho muito maluco que consigo estar fazendo isso hoje ainda, sabe? Não sei até quando. Acontece e é doido, se pensar a realidade desde onde venho. Ao mesmo tempo, é melhor viver assim, porque estou conseguindo, estou produzindo o que desejo e espero que muitas pessoas consigam.  Cada uma terá de construir sua própria saída; terá que achar seu jeito de sair da arte através da arte. Mesmo assim, é importante ver que é possível, apesar dos pesares. Acho que, de algum modo, estou mostrando que é possível isso acontecer. Por outro lado, é um trabalho que exige uma dedicação estranha…

É uma preguiça dedicada, é isso? (risos)

Sim! (risos) Até para produzir, às vezes, tu tens que se permitir o ócio, né? É difícil se permitir ocioso, confesso. Tanto por uma condenação moral à vadiagem quanto por questões da vida prática. Para ter esse tempo, precisamos ter algumas economias guardadas ou renda fixa.

Pra encerrar então, o que vem na sequência? Além da aquisição pelo MARGS da obra Criptocromo…

Estou entrando no acervo do Centro de Arte, Ciência e Tecnologia SESI Lab, de Brasília. É um centro recém inaugurado muito interessante. Tem ligação com um museu de arte, ciência tecnologia bem importante e de relevância histórica, o Exploratorium, de São Francisco, Estados Unidos. Entro no acervo a partir do trabalho Ok/Cancel. Teremos exposições relacionadas a isso. Agora, exponho em Maringá (PR) e, também, no ano que planejo outras mostras. Talvez, uma publicação de minha tese em formato de livro. A instalação Criptocromo (A Cor Escondida), da Bienal do Mercosul, será incorporada ao acervo do MARGS. Além disso, aguardo resposta de alguns editais públicos. Mantenho essa rotina de envios. Bastante coisa em aberto.
Vamos ver o que acontece! A busca é contínua.


  1. por Alexandre Nicolodi.

Um olhar particular sobre a coleção Sartori

Júlio César Herbstrith1

Estudar arte contemporânea é um ato de perpétua desconstrução; ver arte contemporânea, também. Geralmente, quando escrevemos sobre arte contemporânea, partimos de uma ideia ou ideias do que seja o contemporâneo, e sempre (quase que inevitavelmente) nos inserimos em alguma ordem do discurso utilizando ferramentas teóricas que nos permitam construir e defender uma argumentação que justifique a contemporaneidade de determinadas produções. Mas, para que os argumentos não se fragilizem pela distância do objeto estudado, sobretudo, é preciso viver com a arte contemporânea. É na mistura entre, “viver e pensar com”, que gostaria de tecer algumas linhas sobre a exposição – “Coleção Sartori — A arte contemporânea habita Antônio Prado”.

O Museu de Arte do Rio Grande do Sul, situado em Porto Alegre, inaugurou recentemente a exposição da Coleção Sartori. Com foco na arte contemporânea, a coleção possui em torno de quatrocentas obras, sendo que, mais de duzentas e cinquenta delas habitam momentaneamente o Museu. Com curadoria de Paulo Herkenhoff (1949), o recorte está situado no primeiro andar do prédio Histórico, ocupando desde o Hall de entrada, o espaço central deste andar e as suas duas alas (as pinacotecas), a Sala Aldo Locatelli e as Salas Negras.

Logo na entrada, o visitante se depara não apenas com o serviço que informa o conteúdo da Mostra, mas também com os textos de curadoria de Herkenhoff, o texto institucional de Francisco Dalcol, diretor do Museu e o espaço reservado à fala dos colecionadores, Nadia Ravanello Pasa e Paulo Sartori. São textos que apresentam ao público a coleção iniciada em 2013 e que, nas palavras de Herkenhof, “não para de crescer, prioriza arte do Rio Grande do Sul e que, sendo uma boa coleção gaúcha, sempre terá uma relevância no país”.

No texto institucional, Dalcol, além dos habituais agradecimentos, sempre necessários, aponta para a importância de expor coleções e reconhece nelas parte “fundamental” dos sistemas das artes (o plural aqui empregado é por minha conta, já que acredito mais em sistemas do que em sistema). Tal importância se estende desde a rede de constituição dos valores artísticos, nas palavras de Dalcol, até às instâncias de legitimação dos artistas e suas obras, bem como da constituição e preservação da memória. O que mostra que mesmo em curto espaço dedicado a agradecimentos, Dalcol segue sendo pesquisador/diretor – e isso é bom.

Do texto dos colecionadores, apesar de ser curto, gostaria de destacar dois termos que talvez resumam a importância da coleção para eles: “prazer” e “compartilhar”. Duas palavras que aparecem no meio dos dois parágrafos, mas que julgo sintetizar o mesmo sentimento que me leva a escrever estas linhas: o prazer que tive em ver a Mostra e agora poder compartilhar, através de pensamentos formalizados em palavras – que nunca vai dar a dimensão do estar com as obras.

As Obras

Na frente destes textos, já travamos contato com o trabalho de Xadalu (1985), com as imagens dos indígenas em coletes à prova de algo. Invasão Colonial – meu corpo nosso território, de certa forma, marca com precisão uma das partes mais importantes desta exposição organizada por núcleos: a parte que abre espaço na arte para a escuta, a fim de ouvir os povos originários para compreender que estamos em Área Indígena. A montagem da mostra se organiza por núcleos conceituais acompanhados por textos na parede que, segundo Herkenhoff, servem para “… provocar a curiosidade e aprofundar o envolvimento dos visitantes com o conjunto” (HERKENHOFF, ZERO HORA – 29 e 30 de janeiro de 2022).

Quando entrei nas Pinacotecas do primeiro andar do MARGS, onde efetivamente se encontra a maior quantidade de obras, escolhi o caminho da esquerda. Uma pequena pintura de Iberê Camargo (1914-1994) de 1988 estava quase que à frente de “On Ice” de Vera Chaves Barcellos (1938). Pensei nessa conversa estranha e nem sempre amistosa que expõe os tensos nós entre arte moderna e contemporânea no solo gaúcho. Resolvi seguir os caminhos da antiga “gente moça” capitaneada por Barcellos e materializada no Grupo N.O. Neste caminho que busquei à esquerda, encontrei Waltercio Caldas (1946), mais adiante Tunga (1952-2016), José Resende (1945), Patrício Farias (1940), o jovem Túlio Pinto (1974), todos os trabalhos conversando sobre experimentalismo, conceito, forma e espaço, talvez uma pitada de ironia conceitual também. Este núcleo da exposição apresentado em um texto preciso (em dois sentidos, de necessidade e de precisão) que nos chama atenção para a linha que costura o núcleo arte, física e conceito. Sobretudo, quem gosta de História da arte e de arte contemporânea se sente praticando o “Slackline” que marca o início da arte contemporânea no Rio Grande do Sul, afinal que conversa estranha o Iberê estava tendo com a Vera Chaves?

Do experimentalismo conceitual, passando pela ironia, e por um tipo de arte que desafia a fisicalidade corpórea das coisas e suas relações com o espaço que habitam, ainda temos nesse mesmo local do MARGS obras que buscam responder à pergunta de um dos textos precisos – Como vai você na Coleção Sartori, Geração 80? Vai muito bem! Karin Lambrecht (1957), Lia Menna Barreto (1959), Maria Lúcia Cattani (1958-2015), Frantz (1963), Milton Kurtz (1951-1996) e Mário Röhnelt (1950-2018), mais Leda Catunda (1961) entre outros que deixo de fora como convite a ver a exposição, costuram esse tecido contemporâneo marcado pelo conceitualismo dos tempos de AI-5 e por um desejo de gesto e de corpo que sublinhava o fim do regime de ditadura na primeira metade dos anos 1980.

Cabe pontuar que nesse mesmo local da mostra o curador criou outra conversa estranha, mas, essa mais interessante. Dialogam na parede do MARGS “O vendedor de pele” (1903) de Pedro Weingärtner (1853-1929), “Tote Hase Weinen Nicht” (coelho morto não chora, de 1990) de Karin Lambrecht e “Cortado” (1990) de Lia Menna Barreto. Segundo o curador, este conjunto aborda “a relação entre vida e morte, dimensões cruciais da existência humana”. Esse gesto curatorial de criatividade e coragem de criar um diálogo conceitual entre uma obra que antecede mesmo o modernismo no Rio Grande do Sul e duas que fincam a bandeira da arte contemporânea no Estado é digno de um olhar muito atento de quem for visitar a exposição. Não é um truque, não vejo como chiste, mas como um gesto que mostra o quanto o contemporâneo pode estar carregado de “nós temporais” que embaralham a história da arte.

Atenção Área Indígena, na pinacoteca central da mostra revela a potência de uma Coleção que nasce atenta às atuais questões contemporâneas. Um olhar para os processos colonizadores, que expõe as mazelas estruturais e colocam todos os dedos nas feridas sociais abertas neste país. Um recorte que apresenta falas contra hegemônicas, apesar das sistemáticas tentativas de apagamento destas. A instalação de Xadalu – Atenção Área Indígena nos convoca à reflexão sobre o espaço que habitamos, pelo qual nos deslocamos cotidianamente, muitas vezes desviando olhar e o corpo dos corpos e olhares espalhados pelo centro histórico da cidade., Corpos e olhares que nos interpelam com suas crenças registradas em pequenas figuras de madeira e cestarias.

Talvez uma das partes mais atualizadas desta exposição que conseguiu reunir nomes como Rosana Paulino (1967), Nelson Leirner (1932-2020), Adriana Varejão (1964) entre outros, cujos trabalhos mais do que mostrar um multiculturalismo afável e feliz que forma nossa sociedade, apresenta as tensões e tentativas de apagamento das memórias e dos corpos às margens. A exposição ainda se debruça sobre a chamada Pop Arte Gaúcha, ressaltando a relevância de nomes como Glauco Rodrigues (1929-2004) e Carlos Vergara (1941), sobretudo, mostra como a arte produzida no Rio Grande do Sul tem para com a figuração um vasto e fértil campo de produção. Do ponto de vista das linguagens contemporâneas, quase tudo está posto. No entanto, como não tivemos nesta mostra a totalidade da Coleção, não podemos aferir se foi por recorte curatorial, questões de espaço físico do Museu ou os velhos problemas tecnológicos que assombram curadorias que considerem a vertente da arte, tecnologia e ciência, mas o fato é que este braço presente na contemporaneidade não está representado na exposição. Sabemos que arte digital está para além do mero uso das ferramentas digitais de reprodução,  pois, potencializa as relações entre arte e tecnologias de e em rede, como web arte e projetos de caráter mais imersivo, interativo ou que explorem as tensões entre o real e o virtual no contexto de ciberespaços, contudo, propostas com este recorte encontram-se ausentes. Mesmo que seja fruto da escolha curatorial ou de uma coleção jovem em ascensão, é preciso também pensar a partir destas produções que retomam a pauta Arte-Ciência-Tecnologias, as quais, em nosso país foram pensadas a partir de artistas como Waldemar Cordeiro (1925-1973), Diana Domingues (1947) ou Giselle Beiguelman (1962).

Detalhe da exposição Coleção Sartori, MARGS. Marina Camargo, Mapa-mole I – Desenho recortado em látex | 160x140x20cm | 2019. Fotografia de Adreson Vita Sá

A Exposição

Me encaminhado para o final deste breve relato, gostaria de destacar pontos curiosos da mostra. Por falar em curioso, em alguns momentos a montagem da exposição dispõe no mesmo pedaço de parede uma pequena multidão de trabalhos que me lembrou um pouco os antigos gabinetes de curiosidades. Neste sentido, penso que as mais de 250 obras poderiam ter sido racionalizadas de forma diferente, sem que a mostra perdesse a qualidade que tem e que não se pode duvidar; mas o espaço do primeiro andar do Museu certamente ofereceu um grande quebra-cabeças para curadoria e montagem, à qual em alguns pontos me pareceu pecar pela quantidade. A relação de proximidade com os detalhes que poderíamos perceber em determinados trabalhos é sacrificado quando nosso olhar se põe distante e tem que percorrer a altitude do pé direito do espaço expositivo. Sobre os precisos textos, ainda que breves, cumprem muito bem a sua função de instigar e convidar os visitantes a pensar com e a partir da mostra e oferecem uma mediação inteligente, sem ser pedantes.

Detalhe da exposição Coleção Sartori, MARGS – núcleo “Arte, conceito e física”. Fotografia de Adreson Vita Sá

Não comentei as exposições do segundo andar do prédio, mas cabe destacar que elas conversam e muito bem com a Mostra – Coleção Sartori, sendo que o Projeto Acervo em Movimento, onde figuram as mais novas aquisições do Museu, traz nomes importantes no contexto da arte contemporânea como Elaine Tedesco (1963), Élida Tessler (1961) e Carlos Asp (1949), entre outros, mas cito estes por seu diálogo direto com a Coleção Sartori. Ainda no segundo andar do prédio é possível ver a exposição – “Dione Veiga Vieira — TERREAL” que faz circular obras pertencentes aos acervos do MARGS, Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, do MACRS, da Fundação Vera Chaves Barcellos — FVCB, da Pinacoteca Aldo Locatelli da Prefeitura de Porto Alegre além de coleções particulares. Ou seja, após terminarmos 2021 com um bom trabalho de resgate da arte contemporânea gaúcha, iniciamos muito bem o ano falando de arte contemporânea no RS, no que se refere à trazer ao público as produções contemporâneas. Faço menção, sobretudo, à exposição – ARTE CONTEMPORÂNEA RS, que ocorreu na metade do ano passado (2021) e trouxe ao público parte significativa do Acervo do jovem Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, e que culminou em um catálogo digital on line e físico que apresenta, não apenas as obras, mas um importante levantamento dos trabalhos que compõem o Acervo.

Não gostaria de encerrar este espaço de reflexões sem antes mencionar um trabalho cuja atualidade se faz presente desde a fundação de nosso país, Ginástica de Pele (2019) de Berna Reale (1965), vídeo de 4’18’’ que registra a performance de “100 jovens entre 18 e 29 anos (…) que já foram abordados pela polícia”. Segundo a artista, o trabalho critica a violência policial motivada por preconceito racial, de classe e homofobia”. (site oficial – Prêmio PIPA). Este trabalho abre diálogo com a obra de Adriana Varejão Tintas polvo, tubos de tinta para pintura artística que apresentam uma variação cromática que tem como base a autoidentificação do brasileiro com sua “raça” ou “cor” a partir de pesquisa realizada pelo IBGE. O resultado não poderia ser outro, a mistura, a variedade a pluralidade de tons. O mesmo plural cromático que vemos no vídeo de Berna, porém, a potência do trabalho de Reale está na sua infeliz e permanente atualidade. Os jovens performando no vídeo simulam “… o exercício de prender, de abordar, de encarcerar nossa juventude”, como explica Berna (site oficial – Prêmio PIPA). Além da qualidade técnica e estética do vídeo, apresentada através de uma edição que coloca o vídeo em uma situação nômade entre obra e registro de performance, sua potência está na ação, no simulacro de um cotidiano marcado pela desigualdade social, desigualdade de direitos e banalização da injustiça social amarrada ao racismo estrutural em nosso país. Ao ver este trabalho de Berna, sinto que ele marca justamente pela capacidade de amarrar todo o centro da exposição de caráter mais crítico; ele se costura com os noticiários diários e escancara a nossa falta de capacidade de reação em uma pátria cada vez mais armada e que nunca foi de todos.


  1. Júlio César Herbstrith é Doutorando em História, Teoria e Crítica da Arte pelo PPGAV/UFRGS, onde desenvolve pesquisa sobre arte contemporânea no Rio Grande do Sul, atua como docente na Universidade Feevale desde 2013.
    * Fotografias por Adreson Vita Sá

A ação possível é ser humane onde estamos

André D. Pares1
(ou Palhares, como quer a Panorama)

Há momentos que marcam o declínio da humanidade. Quando o atual presidente do Brasil diz, entre salivas, que “ripou” todo mundo do IPHAN, nesse fim do ano pandêmico de 2021, não é só (mais) um uso sem sentido da língua portuguesa. A ignorância orgulhosa propositada marca um ponto profundo de decadência porque procura representar, num ato – aparentemente banal –, toda destruição prévia impetrada por esse governo, não menos cheia de orgulho abjeto.

Essa suposta cereja do bolo – putrefato como a bolsonariedade – quer ter, pois, um componente mórbido a mais. Se o IPHAN é a instituição responsável pelo patrimônio histórico e artístico do país, a sanha assassina da milícia instalada no poder precisa urgente chacinar qualquer sinal de humanidade que o Instituto preserve, como é a função para o qual foi criado há quase 80 anos.

Seria até provável – tal o script tacanho que rege a camarilha – que nem se tivesse achado “azulejo” algum e muito menos numa construção do sr. senil cuja rede de lojas escoltadas por estátuas feiques é devedora de milhões aos cofres públicos. Não fosse a esgarçada garantia de democracia que assegurou a presença do IPHAN no processo, lá em 2019, não se duvidaria de uma cópia da mesma farsa da facada. Ou seja, o surrado artifício, mais torpemente usado quanto mais esse governo afunda, do uso descarado da mentira para dar um recado claro: somos uma milícia (no melhor estilo das ditaduras – ainda que nem isso sejam capazes de fazer direito) nós matamos quem e o que queremos, do jeito que pretendemos, a hora que desejamos; e agora estamos aniquilando uma salvaguarda científica, que é a preservação da história da civilização – essencial para nos resguardar da barbárie – ripando (sic) esse pessoal do IPHAN “com pê agá”.

Humanidade e Memória

A preservação da história da civilização, que é a garantia do trabalho do IPHAN, entre demais importâncias, nos protege da estupidez. Esse fato precisa ser sublinhado especialmente em momentos nefastos da história como o que estamos vivendo. Pois a importância dessa proteção está em podermos seguir com saúde mental para manter a clarividência no prosseguimento do permanente trabalho de pensamento sobre o humano, que ilumina desde a memória até, por isso, o presente e o futuro do que é isso que chamamos de nós (mesmos) – e do que não é (e é maior que o humano e daí que o suporta – literalmente! – e o assegura).

Nesse sentido, a memória, em tal momento da obra do filósofo inglês T. Hobbes, por exemplo, aparece especialmente como uma garantia para sermos quem somos. Sem memória, é praticamente peremptório, conforme Hobbes, que já não possamos ser nós mesmos. O corpo até pode estar ali. Mas não há identidade. Não por acaso, trata-se do mesmo filósofo que imagina o pacto social como ato inaugurante de uma civilidade que deixa o estado de natureza pra trás. Lá, es seres humanes – e isso é uma hipótese especulativa de origem – se matavam por água, comida, abrigo; com o pacto, dão a um soberano (e no texto é masculino mesmo, sem alternativa de declinação de gênero) o poder exclusivo da violência (isto é, de poder matar), e então podem conviver sem medo (e sem necessidade) de matarem-se umes aes outres.

Como se vê, há neste Hobbes (e em muites outres pensadores), a procura atenta e persistente pelas engrenagens que garantem a preservação da humanidade, seja no (auto)conhecimento, através da memória; seja na político-ética, através da forma de organização social. Portanto, todo um elogio e cuidado à natureza humana que, exatamente, arrepia a bolsonariedade – e que, exatamente (e não só!) é uma das atividades que as artes são capazes de fazer.

Identidade, arte; tempo e Natália

Nesse tempo sombrio no qual alguém com algum poder ri grunhindo achando que pode dizimar a civilização com um discurso mal feito, a arte automaticamente se impõe. Fica naturalmente explícito através dela – como se precisasse – que a memória é uma das matérias primas pelas quais o trabalho artístico firma algumas de suas características principais, que é a busca, a descoberta e a construção de identidades. Ao plasmar esse reconhecimento mnemônico tanto coletivo como individual, ela faz o serviço de desvelar e de preservar, ao mesmo tempo, os tempos em que as coisas eram, para em seguida se poder dizer que elas são, e que em seguida já serão de outra forma.

O caso é que não há reconhecimento possível sem a preservação do que foi construído em tempo anterior.  O trabalho humane de ser humane é meticuloso. É por isso que se criou a ideia de cultura, é por isso que já não nos matamos (tanto) por tão pouco (embora se tenha voltado, com orgulho, a essa selvageria). É por isso que criamos institutos como o IPHAN. É por isso que uma revista (e editora) como a Panorama Crítico retorna.

Foi com a PC, lá no já longínquo 2009 (nem faz tanto assim, mas ataques profundos à humanidade nos fazem sentir envelhecer mais rápido) que esse reconhecimento de identidade através da arte preservada, num trabalho de arquivo incrível, foi tornado dossiê (na sexta edição da revista). Precisar retomar aquela tarde de muita emoção na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro observando em silêncio e admirado as obras da artista-interna Natália é uma felicidade, não fosse a tristeza de ter que usá-la como imunizante à canalhice assassina que pensa poder fazer desaparecer trabalhos e instituições que revelam, por exemplo, o que segue:

“Natália é a interna doente mental Natália Leite, que no belo trabalho do ex-estagiário Fábio dal Molin (veja o texto no dossiê), tem sua vida explicada-narrada-sentida. Com sua memória de vida e sua obra guardada e exposta, Natália é um pouco mais: parte da identificação da mulher que viveu na segunda metade do século XX no sul do Brasil, e que teve determinados percalços, encaminhamentos e possíveis soluções na sua existência, nesta faixa temporal da existência humana, nesta faixa territorial do planeta.”

(…)

“… ao se dispor a organizar (os trabalhos artísticos des internes), uma das coisas que se pode fazer é se ficar sabendo, por exemplo, que Natália, aos treze anos, fugiu de casa, no interior do estado do Rio Grande do Sul, e, 400 quilômetros depois, veio parar num hospício, na capital, que na época, o ano de 1956, abrigava com sua lotação máxima: cinco mil internes. E saber mais: que depois de tentativas de saídas e voltas necessárias ao hospital como único lugar de abrigo, Natália encontre hoje a serenidade possível numa cor de abóbora, que invariavelmente invade seus bordados e desenhos (detalhe no texto da sexta edição).”

(…)

“Da vontade de se dispor a organizar-arquivar o material produzido por estes louques transformades em artistas, surge a transformação da memória individual em história social.”

Nem percebemos, mas já estamos recolhendo os cacos gerados pela bolsonariedade, limpando o sangue (ainda que muito esteja e ainda vá escorrer), retomando o ar nos pulmões, para que esse ínterim ignominioso da história fique o mais excentricamente exposto possível, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Essa é A ação possível do lugar que estamos, neste lugar, neste momento, para responder ao editorial da PC e agradecer e comemorar sua volta. Pela preservação do Patrimônio Histórico e Artístico da arte que é nos mantermos humanes: salve a crítica, Panorama!


  1. Prof. de filosofia, jornalista, ms. em comunicação.

Crédito da imagem:
MARS (Museu Antropológico do RS) – http://museuantropologico.blogspot.com/2013/06/tradicao-tupiguarani.html